"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/04/2024

Jurisprudência 2023 (157)


Cumulação de pedidos;
requisitos*


1. O sumário de RL 27/9/2023 (2294/21.9T8AMD.L1-4) é o seguinte:

À luz da reforma do Código de Processo Civil operada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho e de acordo com o disposto no art.º 590.º n.ºs 2 e 3, desse diploma legal, é de seguir o entendimento que preconiza dever o juiz convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenham deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1.–Relatório

1.1.–AAA instaurou a presente acção declarativa de condenação contra Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL, pedindo que seja anulada a declaração aposta no recibo de indemnização e condenação a Ré pagar-lhe duas indemnizações, uma de valor nunca inferior a 7.500€ por conta da IPP de pelo menos 10% e outra por danos morais pela quantia de 5.000€, acrescidas de juros de mora desde a data da alta clínica, isto é, 17.05.2021, até integral pagamento.

Alegou, para tanto, que em 29.07.2020, o A. celebrou com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção; a Junta de Freguesia de Encosta do Sol transferiu a sua responsabilidade decorrente de acidentes pessoais para a R., a qual é titulada pela apólice n.º 14.00108599; a 14.08.2020 sofreu um acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 31.08.2020; a 09.12.2020 foi novamente vítima de acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 17.05.2021; dias depois, foi contactado por um funcionário da R., informando-o que iriam proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, desde já, por força das sequelas sofridas pelo A. no pé e joelho direitos; nesse seguimento, a R. remeteu ao A. o recibo nº 21.05.75721, precisamente atestando o pagamento do valor indicado; após aquela data, ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema da sua mão esquerda, ainda em resultado do segundo acidente de trabalho; porém, obteve da R. que o sinistro já tinha sido encerrado e que já tinha recebido a totalidade da sua indemnização; tem agora noção do que consta do recibo pelo mesmo assinado, mas a verdade é que apôs a sua assinatura no mesmo em manifesto erro, porque estava totalmente convicto que se tratava apenas da indemnização devida por força da incapacidade permanente que ficou afectado, em resultado dos acidentes ocorridos, exclusivamente quanto ao pé e joelho direitos; se tivesse a percepção, no momento em que recebeu aquele valor e assinou o respectivo recibo, estava a ser alegadamente ressarcido de todos os danos e que a incapacidade fixada, de 5%, se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem teria assinado o referido recibo; assim, nos termos do disposto no artigo 247.º do Código Civil, a declaração do A., aposta no recibo de que se encontra totalmente ressarcido dos danos decorrentes do acidente em causa nos presentes autos com o recebimento da quantia de 3.750€ e que exonera a R. de qualquer responsabilidade decorrente dos acidentes que o A. sofreu é anulável, o que desde já se invoca e requer. [...]

A 02.06.2022, o Juízo Local Cível da Amadora declarou-se incompetente para conhecer do pleito (fls. 53 a 54).

Após trânsito desse despacho, foi ordenada a remessa ao Juízo do Trabalho de Sintra (fls. 56).

Por despacho de fls. 66 a 68 verso, consignou-se o seguinte:

“Nestes termos, entendeu-se que a acção não pode prosseguir pois:

– Aceitando-se a competência deste Tribunal para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção, não é possível aproveitar os articulados para esse fim;

– Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado.

É que, feito este excurso, o peticionado corresponde a uma cumulação ilegal de pedidos (artigo 555.º do Código de Processo Civil), porquanto:

Aos pedidos feitos correspondem formas de processo incompatíveis;

A cumulação ofende regras de competência em razão da matéria;

Sem que haja possibilidade de fazer prosseguir a acção mesmo enquanto acção especial, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 38.º do Código de Processo Civil, pois, como se viu, não é possível aproveitar os articulados para esse fim.

Estamos, por isso, perante uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância da R. (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea f), e 578.º do Código de Processo Civil).

Decisão: pelo exposto, absolvo a R. da instância”.

1.2.–Inconformado com esta decisão dela recorre o Autor [...].

1.5.–Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2.–Objecto do recurso

[...] a questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se ocorre nulidade em virtude de não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC. [....]

4.–Fundamentação de Direito

Da existência de nulidade por não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC

Dispõe o art.º 590.º do CPC,~

“(…) 2-Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a)Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b)Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c)Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3-O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4- Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5- Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6- As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs  4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7- Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados”.

Segundo o art.º 6.º n.º 2 do CPC:

“O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”

Por seu turno, o art.º 186.º do mesmo diploma reza o seguinte:

1- É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2- Diz-se inepta a petição: (…)
c)Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.(…)”

Como é sabido, o pedido corresponde ao meio de tutela jurisdicional pretendido pelo Autor - o efeito jurídico que o Autor quer obter com a ação (Antunes Varela e Outros, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 243). Traduz a solicitação de concreta providência para tutela do interesse afirmado pelo autor, devendo, como tal, ser claro, compreensível, inteligível e idóneo (Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, Volume II, FDL, pág. 357). 

Acresce que o autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação (art.º 555.º n.º 1, do CPC).

Nos termos do citado art.º 590.º, para além das situações previstas na sua alínea a), compete igualmente ao juiz endereçar convite às partes para estas aperfeiçoarem os seus articulados, suprirem irregularidades e insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (n.º 2, alínea b) e n.º 4), o que significaria, à partida, que a ineptidão da petição inicial (por cumulação ilegal de pedidos) não daria lugar ao despacho de aperfeiçoamento.

Sucede que,

Para se aferir da incompatibilidade substancial de pedidos interessa apenas a contradição lógica, a incompatibilidade material de pedidos que conduzam à ambiguidade da pretensão e do efeito pretendido. [...]

No presente caso, relembra-se, o Autor invocou ter celebrado com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção, tendo esta transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho. No âmbito desse contrato sofreu dois acidentes de trabalho (em 14.08.2020 e 09.12.2020).  Tendo sido contactado por funcionário da Ré no sentido de que iria aquela proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, referente à indemnização pelas sequelas sofridas pelo Autor relativas a um dos acidentes, o Autor acabou por assinar recibo, atestando o pagamento desse valor.  E ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema (da sua mão esquerda) decorrente do segundo acidente de trabalho, vindo a ser informado, posteriormente, que o sinistro estava encerrado e paga a totalidade da indemnização. Mais refere que assinou o recibo em erro, visto estar convicto de que se tratava apenas de indemnização por um dos acidentes que sofreu. Se tivesse tido a percepção, quando recebeu aquele valor e assinou o recibo, de que não estava a ser ressarcido por todos os danos e que a incapacidade fixada se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem assinado tal recibo, sendo anulável tal declaração. Aduziu também que face às lesões e sequelas de que padece, fruto dos sinistros ocorridos, deve ser-lhe atribuída uma desvalorização/incapacidade permanente, nunca inferior a 10%, segundo a TNI, a que corresponde uma indemnização de valor nunca inferior a € 7.500,00, a que acresce a indemnização pelos danos morais e dores constantes que o Autor sofre e continuará a sofrer, que deve ser arbitrada em € 5.000,00 (cinco mil euros).  

Nessa sequência, pediu que a acção seja “julgada procedente, e, em consequência, anulada a declaração aposto no referido recibo e a R. condenada a pagar ao A. uma indemnização global nunca inferior a € 12.500,00, acrescida de juros de mora, desde a data da alta clínica, 17.05.2021, até integral e efectivo pagamento”.

Como resulta da decisão recorrida, o Mmo. Juiz considerou-se competente para conhecer de processo que vise a reparação dos danos resultantes de acidente de trabalho e também o pedido de anulação da declaração que o Autor emitiuAcabou, porém, por considerar não ser possível aproveitar os articulados aqui produzidos, considerando existir cumulação ilegal de pedidos (art.º 555.º do Código de Processo Civil), os quais correspondem a pedidos referentes a formas de processo incompatíveis, o que ofende as regras de competência em razão da matéria - concluindo, assim, pela verificação de uma excepção dilatória, tendo, como tal, absolvido a Ré da instância. [...]

Assim sendo, configurando-se uma cumulação ilegal de pedidos, à luz do supra exposto entendimento, deveria o Mmo. Juiz, ao invés de ter absolvido o Réu da instância, ter formulado convite ao Autor para este vir indicar qual o pedido que pretende ver apreciado neste processo, sob a cominação de não o fazendo ser o Réu absolvido da instância quanto a todos eles (art.º 38.º, n.º 1, 555.º n.º 1, do CPC “ex vi” do art.º 1.º n.º a alínea a), do CPT).

Essa ausência de convite traduz a prática de uma nulidade, nos termos do art.º 195.º do CPC, visto se traduzir na omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, com influência na decisão da causa. E porque está a mesma coberta por decisão é a mesma impugnável por via de recurso."


*3. [Comentário] a) Não se discute o raciocínio que esteve subjacente à fundamentação do acórdão, mas, salvo o devido respeito, não se percebe o que é que ele tem a ver com o caso sub iudice.

Pelo que se compreende do relatado no acórdão, o que sucedeu foi o seguinte:

-- O Autor instaurou uma acção na qual formulou dois pedidos: um pedido de anulação da declaração aposta num recibo; um pedido de condenação da Ré pagar-lhe duas indemnizações, uma para reparação dos danos sofridos em dois acidentes de trabalho e uma para reparação de danos morais;

-- O tribunal no qual a acção foi proposta declarou-se materialmente incompetente para apreciar a acção; a pedido do Autor, os articulados foram remetidos para um Juízo do Trabalho;

-- Este Juízo proferiu um despacho do seguinte teor:

"– Aceitando-se a competência deste Tribunal para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção, não é possível aproveitar os articulados para esse fim;
 
– Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado."

A articulação entre estas duas partes do despacho não é evidente. Seja como for, no mesmo despacho afirma-se ainda o seguinte:

"É que, feito este excurso, o peticionado corresponde a uma cumulação ilegal de pedidos (artigo 555.º do Código de Processo Civil), porquanto:
 
– Aos pedidos feitos correspondem formas de processo incompatíveis;
 
– A cumulação ofende regras de competência em razão da matéria;
 
Sem que haja possibilidade de fazer prosseguir a acção mesmo enquanto acção especial, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 38.º do Código de Processo Civil, pois, como se viu, não é possível aproveitar os articulados para esse fim.

Estamos, por isso, perante uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância da R. (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea f), e 578.º do Código de Processo Civil)."

Disto resulta:

-- Uma certeza: a excepção dilatória que o Juízo do Trabalho invoca é a falta de conexão entre os pedidos cumulados (art. 577.º, al. f), CPC);

-- Uma dúvida: não é clara a razão pela qual o Juízo do Trabalho entende que "não é possível aproveitar os articulados" para conhecimento das indemnizações correspondentes aos acidentes de trabalho; será que (o que é improvável) o alegado não é suficiente para esse "aproveitamento"?

b) É claro que a invocação do disposto no art. 577.º, al. f), CPC no despacho do Juízo do Trabalho só pode ser um equívoco. Se, para a 1.ª instância, os problemas se referiam à diversidade das formas do processo e à competência em razão da matéria (nomeadamente para conhecer do pedido prejudicial relativo à anulação da declaração do Autor), era nessa base que se deveria ter decidido. 

No entanto, também é evidente que, em parte alguma do seu despacho, o Juízo do Trabalho invoca a incompatibilidade substancial entre os pedidos cumulados a que se reporta o art. 186.º, n.º 2, al. c), CPC. É por isso que permanecem enigmáticas as razões pelas quais a RL sentiu necessidade de enquadrar o objecto do recurso na "incompatibilidade substancial de pedidos", tanto mais que não se descobre nenhuma incompatibilidade entre o pedido (prejudicial) de anulação da declaração negocial, o pedido de indemnização dos danos decorrentes dos dois acidentes de trabalho e o pedido de indemnização dos danos morais. A haver problemas, eles respeitam à compatibilidade processual (não substancial) entre os pedidos.

c) Se bem se percebe toda a situação, também não é fácil imaginar como é que a 1.ª instância pode dar cumprimento ao decidido pela RL. Para a 1.ª instância, o problema era de compatibilidade dos pedidos quanto à competência material e à forma do processo; para a RL, o problema é de incompatibilidade substancial entre os pedidos e de escolha de um dos vários pedidos formulados pelo autor. Efectivamente, um diálogo difícil entre as instâncias.
 
MTS


Apoio à investigação (27)


Códigos italianos

No site da Biblioteca Centrale Giuridica do Ministero della Giustizia é possível encontrar alguns úteis elementos bibliográficos sobre a elaboração de vários códigos italianos.


23/04/2024

Jurisprudência uniformizada (67)


Massa insolvente; providência conservatória;
venda executiva

-- Ac. STJ 4/2024, de 23/4, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

O produto da venda dos bens penhorados em processo de execução, no qual tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com trânsito em julgado, só é de considerar pago ou repartido entre os credores, para os efeitos do artigo 149.º, n.º 2, do CIRE, com a respectiva entrega. - O titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado num processo de execução, apensado ao processo de insolvência do devedor/executado, não está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.


Bibliografia (1121)


-- Barbieri, Federica, La direzione del giudice e l’economia processuale (E.S.I.: Napoli 2024)


Jurisprudência constitucional (226)


Direito ao recurso


1. TC 10/4/2024 (292/2024) decidiu o seguinte:

a) não conhecer do objeto do recurso relativamente à norma contida no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;

b) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 62.º, n.º 1, da Lei Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz (Lei n.º 78/2001, de 13 de julho), na redação introduzida pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para os tribunais da Relação das decisões dos tribunais de comarca que apreciem as impugnações de decisões dos julgados de paz; [...]

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. O recorrente indica, como objeto do recurso, (i) a norma contida no artigo 62.º, n.º 1, da LJP, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para os tribunais da Relação das decisões dos tribunais de comarca que apreciem as impugnações de decisões dos julgados de paz e (ii) a norma contida no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), na interpretação segundo a qual “[…] o recurso ordinário só é admissível, quando a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre”.

Como resulta do despacho do relator referido em 1.2.3., supra, prefigura-se a questão prévia da admissibilidade do recurso relativamente à segunda questão.

2.1. O artigo 62.º da LJP tem a seguinte redação:

Artigo 62.º
Recursos

1 – As decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz.

2 – O recurso tem efeito meramente devolutivo.


Por sua vez, o artigo 63.º da LJP prevê o seguinte:

Artigo 63.º
Direito subsidiário

É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes.

Por fim, o artigo 629.º, n.º 1, do CPC estabelece:

Artigo 629.º
Decisões que admitem recurso

1 – O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa. [...[

Como se afigura evidente, os critérios dos artigos 62.º da LJP e do artigo 629.º, n.º 1, do CPC são alternativos entre si, ou seja, para decidir acerca da recorribilidade de uma decisão do tribunal de comarca, o Tribunal da Relação aplicará o artigo 62.º da LJP (concluindo que nunca há lugar a recurso) ou o artigo 629.º do CPC (concluindo que há lugar a recurso ou não, conforme se verifiquem ou não os requisitos da alçada e da sucumbência).

Foi precisamente essa a conclusão do acórdão recorrido, que, ao aderir aos fundamentos da decisão singular do Senhor Juiz Desembargador relator conclui, sem qualquer ambiguidade, que “[…] mesmo que se admitisse – arguendo – que o recorrente pretende controverter a constitucionalidade da norma do art. 629.º do CPC, com o sentido de o valor da ação ser o único critério relevante para a recorribilidade de uma dada decisão, sempre seria de continuar a concluir pela inadmissibilidade do recurso, dado que tal norma é meramente hipotética ou virtual, não consubstanciando de modo algum a ratio decidendi na decisão recorrida […]”. É certo que, no segmento final do acórdão recorrido, se pode ler que “[…] a admissibilidade de recurso está condicionada, através de limites objetivos fixados na lei, derivados, nomeadamente, da natureza dos interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão económica para a parte vencida (cfr. art. 629.º/1 do CPC) […]”, mas trata-se, aqui, já de um obiter dictum, em que o tribunal recorrido afirma, em termos gerais, que a lei pode estabelecer a irrecorribilidade em função de certos critérios, dando como exemplo o artigo 629.º, n.º 1, do CPC, sem que este tenha constituído critério normativo da decisão concreta, como – insiste-se – foi expressamente afastado. Como se faz notar no despacho do relator transcrito em 1.2.3., supra, “[o] que se poderá dizer é que, eventualmente, caso o recurso venha a ser procedente relativamente à norma do artigo 62.º, n.º 1, da [LJP], o tribunal recorrido, quando proferir nova decisão nos termos do artigo 80.º, n.º 2, da LTC, poderá vir a aplicar o disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC. Porém, não o fez na decisão recorrida”. Efetivamente, só se, por via de uma eventual procedência do presente recurso de constitucionalidade, o tribunal recorrido se visse vinculado a proferir nova decisão sem aplicar o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da LJP é que poderia, então, equacionar a aplicabilidade do disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC, por remissão do artigo 63.º da LJP.

Tanto basta para concluir que, relativamente à segunda questão de inconstitucionalidade referida em 2., supra, se mostra inútil o conhecimento do objeto do recurso, uma vez que uma decisão de procedência não teria como consequência a modificação da decisão recorrida, visto que esta não aplicou a norma enunciada pelo recorrente.

Consequentemente, não se tomará conhecimento do objeto do recurso relativamente a essa questão."

[MTS]


Jurisprudência 2023 (156)


Acção judicial;
ofensa do direito ao bom nome

1. O sumário de RP 29/6/2023 (21209/20.5T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A ofensa do direito à honra e ao crédito pode ser praticada nos articulados de uma acção judicial e não é o simples facto de isso constituir o exercício do direito de acesso à justiça que exclui, sem mais, a ilicitude da ofensa.

II - Todavia, o contexto da acção pode permitir concluir que determinadas afirmações não podem ser qualificadas como ofensivas e ilícitas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O autor pretende através da presente acção obter da ré e da interveniente principal uma indemnização pelos danos que diz ter sofrido em consequência das ofensas ao seu direito ao crédito e ao bom nome perpetradas por aqueles nos articuladas de duas acções judiciais.

A regra básica de distribuição dos riscos e que constitui um dos princípios básicos da responsabilidade traduz-se na máxima casum sensit dominus. A imputação delitual dos danos a outrem pressupõe a lesão de direitos subjectivos, de posições jurídicas que mereçam ser protegidas de qualquer agressão.

Só porque ocorreu um dano e ele resultou de uma actuação voluntária do agente não se pode concluir de forma automática pela responsabilidade do agente pelo ressarcimento dos danos. Fora dos casos excepcionais em que o próprio legislador responsabiliza o agente por factos lícitos, para haver responsabilidade é necessário, desde logo, haver um acto ilícito.

A ilicitude pode resultar da violação de direitos subjectivos ou normas legais de protecção ou da violação de deveres de prestação de origem contratual.

Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Ao definir o âmbito da responsabilidade civil, este preceito distingue duas modalidades básicas de ilicitude: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios.

No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito da pessoa. No outro, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem. Ao lado dessas duas modalidades básicas de ilicitude para efeitos de responsabilidade civil, encontram-se várias outras previsões específicas de actos ilícitos.

Uma delas é o artigo 484.º do Código Civil, segundo o qual quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados. Aqui a ilicitude traduz-se na ofensa ao crédito ou ao bom-nome de uma pessoa singular ou colectiva, através da divulgação de factos susceptíveis de os prejudicar.

Este preceito é a concretização dos meios de tutela dos direitos de personalidade, consagrados no n.º 2 artigo 70.º. Segundo este preceito, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, sendo que a pessoa ameaçada ou ofendida, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Tal preceito visa cumprir o estabelecido no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, o qual reconhece a todos, entre outros direitos pessoais, o direito ao bom nome e à reputação, como expressão directa do princípio da dignidade humana. Este direito fundamental tem por objecto o tipo de representação que os outros têm sobre uma pessoa, abrangendo todos os aspectos relativos a uma projecção social positiva e à consideração daí resultante no seio da sociedade. [...]

A ofensa ao crédito da pessoa ocorre quando se atinge, diminui ou coloca em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade de uma pessoa para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que a pessoa não faltará aos seus compromissos, a imagem pública quanto à sua capacidade ou vontade de honrar e satisfazer os seus compromissos de natureza económica, a projecção social das aptidões e capacidades económicas dos autores (apud Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, pág. 304 e Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, página 549). [...]

Não há, contudo, violação do direito ao crédito de alguém sem a publicitação do acto que pode afectar esse direito, sem se tornar pública a imputação a alguém de uma actuação que possa atingir, diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade da pessoa para satisfazer as suas obrigações.

Para haver ilicitude, consubstanciada numa violação injusta do direito ao crédito, é necessário que o agente tenha tornado pública a imputação da actuação que pode importar a lesão do direito, tenha transmitido essa imputação a terceiros levando-os a crer na imputação e a formarem uma convicção sobre a veracidade da imputação e a actuarem em conformidade com isso.

Já o bom nome de uma pessoa é ofendido quando se prejudica, diminui ou coloca em crise o conceito favorável que a pessoa tem na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ela logrou obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecida, o seu prestígio ou reputação. [...]

No caso dá-se a circunstância de as afirmações alegadamente ofensivas do direito ao crédito e ao bom nome terem sido feitas nos articulados de acções instauradas pelo aqui autor contra a aqui ré e a interveniente principal. Sabendo-se que a ilicitude é excluída quando há consentimento do lesado ou a actuação do agente corresponde ao exercício de um direito legítimo ou ao cumprimento de um dever, coloca-se a questão de saber como se relacionam o direito de acesso à justiça e à defesa e o direito ao bom nome e ao crédito.

O direito de acesso à justiça, tal como o direito à honra e à consideração pessoal, é um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais. Essa circunstância impõe algum cuidado na responsabilização da parte que toma a iniciativa do processo pelas consequências da sua instauração ou daquela que confrontada com um processo se vê obrigada a apresentar a sua defesa. Designadamente, não pode nunca permitir que da simples perda da demanda se conclua pela ilegitimidade da iniciativa processual ou que do simples decaimento da defesa se conclua pela ilicitude dos factos alegados como meio de defesa, e se retire o dever de indemnizar a parte contrária dos prejuízos sofridos em consequência da demanda.

Sucede, porém, que esse direito não é, como não são outros de maior relevo, irrestrito ou insusceptível de adequação prática e, portanto, não pode servir nunca para legitimar toda e qualquer postura processual. Seria inconcebível que o processo, enquanto conjunto de regras instrumentais destinadas a permitir a aplicação do direito substantivo ao caso concreto e a realização da Justiça, pudesse afinal permitir a violação impune de direitos materialmente consagrados. Se o processo serve, por exemplo, para que uma pessoa ofendida nos seus direitos de personalidade possa obter o ressarcimento dos danos que essa violação lhe causou, evidentemente que não pode servir para acobertar nova violação desses direitos no decurso do processo e através do processo e isentar de responsabilidade o autor do novo acto ilícito.

direito de acção, nomeadamente na acepção de direito de defesa é um direito instrumental, no sentido de que não consubstancia em si mesmo um direito subjectivo material, mas é somente o mecanismo através do qual se obtém a tutela dos direitos substantivos. Esse direito não compreende nem exige no e para o seu exercício qualquer carta branca para se poder dizer ou fazer tudo no processo, designadamente violar legítimos direitos de outrem.

A Constituição de República Portuguesa consagra no seu artigo 20.º o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O mesmo consagra o legislador ordinário no artigo 2.º do Código de Processo Civil. Em ambos os casos a consagração é irrestrita, isto é, não exceptua as violações de direitos perpetradas no âmbito de um processo judicial, o que significa, precisamente com base nesses preceitos, que também a pessoa que viu os seus direitos violados no âmbito de um processo goza da faculdade de lançar mão dos mecanismos judiciais que tenham por objecto reconhecer os seus direitos em juízo, prevenir ou reparar a violação deles, realizá-los coercivamente.

Se mais não fosse alcançar-se-ia a mesma solução com recurso ao princípio da boa fé e ao instituto do abuso de direito, presente em todo o sistema jurídico e, como tal, também, no sistema de regras que é o caminho para a realização dos direitos materiais, isto é, o processo. O processo visa antes de mais a protecção, a defesa, a realização, o ressarcimento da violação dos direitos legítimos, dos direitos merecedores - quanto ao conteúdo ou ao modo de exercício - dessa tutela e, por isso, tem de ser ele mesmo inócuo, no sentido de que tal como deve ser garantia da efectiva tutela a que tende, não pode ser ele mesmo fonte de violação desses direitos. O contrário seria uma afronta flagrante do princípio da boa fé que nada justifica e, sobretudo, uma violação das próprias regras de direito material enformadas por aquele.

Assim, em regra, uma actuação processual que importe a violação de direitos materiais legítimos não pode deixar de constituir um acto recusado pela ordem jurídica, um acto ilícito quae tal. Por isso, desde que essa actuação corresponda a um acto culposo, não pode deixar de implicar responsabilidade civil pelos danos que forem consequência dessa actuação.

Havendo conflito, real ou aparente, entre direitos ou interesses igualmente protegidos pela constituição, a divulgação de factos desonrosos deve revelar-se adequada e necessária à salvaguarda do direito ao abrigo do qual a divulgação é feita, sob pena de a divulgação ser ilícita.

Lida e relida a matéria de facto não encontramos na mesma absolutamente nada que possa constituir uma ofensa ao crédito ou ao bom nome do autor.

Não há, desde logo, na matéria de facto nenhum facto que seja susceptível de diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade do autor para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que ele não faltará aos seus compromissos.

O facto de ter sido afirmado que numa determinada altura e num determinado contexto ele não teria meios de subsistência próprios e beneficiava da ajuda económica da ré é absolutamente anódino a esse respeito porque não é por uma pessoa num certo momento passar por uma situação dessas, a ser verdadeira, que o seu crédito é posto em causa.

Acresce que a situação é descrita como facto passado e não é objecto de divulgação pública porque as afirmações estão circunscritas ao contexto de uma acção judicial que sendo embora pública não é frequentada por um conjunto de pessoas suficiente para que a voz do processo se transforme numa voz pública ou conhecida do público.

Também o facto de se afirmar que o autor não desenvolvia actividade profissional no âmbito de uma empresa e que retirava benefícios desta sem contrapartida de trabalho ou actividade de relevo não é de modo algum algo que diminua ou coloque em crise o conceito favorável que o autor pudesse ter na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ele tenha logrado obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecido, o seu prestígio ou reputação.

Desde logo porque essa reputação é alcançada através da intervenção que ele alcança no espaço público e esta nada tem a ver com a circunstância de ele o fazer enquanto sócio, trabalhador ou colaborador de uma sociedade ou a qualquer outro título e por isso as afirmações feitas nos articulados das acções não têm qualquer capacidade de fazer reverter essa reputação.

Depois porque o contexto da acção não é um contexto de espaço público capaz de levar as afirmações nela feitas para o domínio público de modo a que as mesmas sejam susceptíveis de influenciar a opinião dos outros.

Acresce que as acções são notoriamente o espaço de discussão da relação pessoal entre o autor AA e a ré BB, aspecto que é notório para qualquer pessoa que com elas contacte, a qual apreende e compreende de imediato os excessos das afirmações ali feitas e que as mesmas não são para levar à letra por estarem influenciadas e perturbadas pelos sentimentos pessoais e o modo como cada um deles reagiu à ruptura da relação pessoal.

Em conclusão, a nosso ver, os factos provados relativos ao comportamento da ré são insuficientes para lhe imputar a prática de um facto ilícito, devendo, ao invés, concluir-se que nas concretas circunstâncias do caso se deve considerar excluída a ilicitude do comportamento da ré."

[MTS]

22/04/2024

Jurisprudência 2023 (155)


Recurso de revisão;
documento novo


1. O sumário de STJ 11/7/2023 (20348/15.9T8LSB-D.P1.S1) é o seguinte:

I – No recurso de revisão interposto com fundamento na alínea c) do artigo 696.º do CPC, a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça considera que a apresentação de documento só será admissível, quando: (i) o documento, por si só, e sem apelo a demais elementos probatórios, seja capaz de destruir o juízo probatório realizado em sede da decisão revidenda e imponha uma decisão mais favorável ao recorrente (requisito da suficiência); (ii) e quando o recorrente não tenha podido fazer uso do documento por desconhecimento da sua existência ou pela sua inexistência (requisito da novidade); iii) o documento deve visar a demonstração ou a impugnação de factos alegados pelas partes ou adquiridos para o processo que tenham sido essenciais para a decisão de mérito colocada em crise, não podendo em caso algum visar a prova de factos novos (requisito da pré-alegação).

II - Um documento relativo a um processo administrativo de apoio judiciário, que podia ter sido junto ao processo principal, para demonstrar que à data da proposição desta ação ainda não tinha decorrido o prazo de prescrição do direito, não reúne os requisitos da novidade, da suficiência e da pré-alegação para servir de base a um recurso extraordinário de revisão, ao abrigo da al. c) do artigo 696.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"8. Antes de mais, impõe-se caraterizar brevemente os autos principais.

Estes dizem respeito a uma ação de responsabilidade civil proposta pelo agora autor contra os sócios da sociedade B..., Lda., pedindo uma indemnização pelos danos causados pela decisão de destituição do cargo de gerente, que lhe foi comunicada em 13-05-2003.

Por sentença proferida em 08-03-2017, foi a ação considerada improcedente, com fundamento na prescrição do direito invocado pelo Recorrente, ou seja, três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos – nº 1 do artigo 498º do Código Civil.

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 28.11.2017, foi a sentença confirmada.

9. Nas conclusões do recurso de revista no processo de revisão, o autor-recorrente invoca, para além do documento do processo administrativo de apoio judiciário, que, na sua ótica, permite interromper o prazo de prescrição, quer se considere ter este prazo a duração de três anos, quer se considere ter a duração de 20 anos, que não prescinde de entender que o prazo de prescrição dos autos é de 20 anos, por estarmos perante um caso de responsabilidade contratual. Ora, desde já se tem de constatar que este Supremo Tribunal não tem de se pronunciar sobre a natureza jurídica da responsabilidade civil invocada nos autos, nem sobre a duração do prazo de prescrição. No processo de revisão não pode ser re-discutida a questão de direito debatida nos autos principais, mas apenas verificar se está ou não preenchido algum dos fundamentos taxativos admitidos pela lei para justificar a admissibilidade excecional do recurso de revisão (artigo 696.º do CPC), que não se pode transformar num recurso ordinário.

10. Assim, o objeto do recurso de revisão interposto pelo autor AA traduz-se em saber se o documento por si apresentado reúne os requisitos exigidos pelo artigo 696.º, al. c), do CPC.

O Tribunal da Relação, por acórdão datado de 22-11-2022, decidiu indeferir liminarmente este recurso de revisão, por considerar, em suma, que, por referência ao documento junto pelo recorrente, não se mostram verificados os requisitos da novidade e da suficiência.

Quid iuris?

Este documento integra várias comunicações que o CDLOA fez, ao longo do tempo, ao recorrente, bem como cartas e requerimentos feitos pelo autor ao Conselho de Deontologia, pelo que apesar de se poder considerar que, na íntegra, ele não era do conhecimento do recorrente, resulta da análise do processo que o recorrente era conhecedor das comunicações que sucessivamente lhe iam sendo feitas, bem como das missivas e requerimentos que remetia ao referido processo. Ademais, sempre esteve na sua disponibilidade conhecê-lo na íntegra, pois o processo de nomeação da Ordem dos Advogados existe desde 2010.

De salientar, ainda, que o apenso B dos autos principais respeita a recurso de revisão precedente do presente, no qual o documento apresentado corresponde a parte do documento que agora apresenta na totalidade (cfr. apenso B do processo físico).

Ademais, considerando o teor da decisão do acórdão cuja revisão se pretende, a ratio decidendi desse acórdão prende-se com a prescrição do direito invocado pelo Recorrente, o qual, nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, é de 3 anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos. E considerou esse acórdão que o recorrente terá tido conhecimento do direito pelo menos em maio de 2003, pelo que, tendo instaurado a ação em 17-07-2015, já o seu direito se mostrava prescrito.

Este acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação nos autos principais, para aferir da prescrição do direito do autor, considerou o pedido de apoio judiciário efetuado pelo autor/recorrente em 12-04-2011, por ter sido esse o único pedido apresentado e alegado pelo autor, ora recorrente.

O autor não invocou naqueles autos, e podia tê-lo feito, nem o pedido de apoio judiciário que agora invoca, nem a ação n.º 1728/06.7..., que terá transitado em julgado em abril de 2014, para deles extrair os efeitos processuais que pretendia (cfr. processo principal do presente apenso).

Logo à data da proposição da ação principal, em 2015, se o autor pretendia beneficiar do disposto no artigo 33.º, n,º 4, da Lei do Apoio Judiciário (LAJ), segundo o qual a ação se considera proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono, com referência ao pedido de apoio judiciário datado de 2010, que agora junta, devia tal facto ter sido desde logo alegado, por se tratar de um facto pessoal de que o autor tinha conhecimento.

O documento que sustenta este pedido, e que agora foi junto, e bem assim a cópia do pedido de apoio judiciário que lhe deu origem, servem como meio de prova documental de facto que, necessariamente, devia ter sido alegado naquela ocasião, aquando da propositura da ação onde foi proferida a decisão cuja revisão o autor pretende.

O autor devia, igualmente, ter alegado e provado a existência da ação n.º 1728/06.7..., o que também não fez, embora nessa data também tivesse conhecimento desses factos e o seu acesso fosse público.

Para além da ausência de novidade, suficiência e de pré-alegação, também em termos de direito material, considerando o regime da prescrição aplicado nos autos, a pretensão do autor, ainda que fosse atendível e se provassem os factos novos que o autor alega, também não seriam causais para permitir a procedência do pedido do autor, continuando a verificar-se a prescrição do direito que o autor invoca. Ou seja, o direito do autor sempre estaria prescrito, quer se tivesse por referência o pedido de apoio judiciário de 2010, quer o de 2011, em face da data em que o autor teve conhecimento do direito, maio de 2003.

Quanto ao trânsito em julgado da ação n.º 1728/06.7..., que também agora o autor usa como argumento para sustentar a interrupção do prazo de prescrição, este facto não foi invocado na ação cuja revisão se pretende.

O autor, ora recorrente, não poderia, pois, beneficiar do prazo legal de dois meses previsto no artigo 327.º, n.º 3, do Código Civil, pois para além de ter conhecimento do seu direito desde 2003, bem como das pessoas que alegadamente praticaram os atos cuja responsabilidade o autor reclama, a verdade é que autor não alegou nos autos principais os factos atinentes ao proc. n.º 1728/06.7... e que já eram do seu conhecimento. E, para que o autor pudesse beneficiar da sucessão de factos que agora alega, devia tê-los invocado na ação principal, pois deles tinha prévio conhecimento.

11. Assim, deve entender-se que, de acordo com a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o documento agora apresentado não reúne os requisitos para que seja admitido um recurso de revisão extraordinário interposto com fundamento na alínea c) do artigo 696.º do CPC, por três motivos:

1) o documento apresentado não é suscetível de destruir o juízo probatório realizado em sede da decisão revidenda, nem impõe uma decisão mais favorável ao recorrente quanto ao decurso do prazo de prescrição (requisito da suficiência);

2) o documento apresentado não é novo, no sentido exigido pela lei, pois que já podia o recorrente ter feito uso dele no processo principal na medida em que conhecia (ou podia facilmente conhecer) a sua existência (requisito da novidade);

3) o documento apresentado visa obter a prova de factos novos, não discutidos nem alegados no processo principal, e que não se revestem de essencialidade para a decisão de mérito colocada em crise (requisito da pré-alegação).

12. Concluímos, pois, que a pretensão do recorrente deverá improceder em face da ausência de novidade, suficiência e pré-alegação do documento apresentado."

[MTS]

19/04/2024

Bibliografia (1120)


-- Bonifácio Ramos, J. L., Tecnologia e Processo: Desafios e Constrangimentos. Em especial, a Inteligência Artificial, RDC 9 (2024-1), 33

-- Correia de Mendonça, L., José Alberto dos Reis entre Lodovico Mortara e Giuseppe Chiovenda, RDC 9 (2024-1), 11


Bibliografia (Índices de revistas) (235)


RTDPC


-- RTDPC 78 (2024-1)


Jurisprudência 2023 (154)


Litigância de má fé;
duplo grau de jurisdição


1. O sumário de STJ 11/7/2023 (10972/10.1TBVNG.P2.S1) é o seguinte:

I- É insusceptível de ser declarada a ineficácia de justificação notarial de aquisição de propriedade por usucapião se a respectiva actuação processual em juízo é contraditória com a conduta anterior dos autores na acção, vista na sua globalidade como atentatória da tutela da confiança do adquirente por essa via de aquisição, e, portanto, configurada como abusiva, ao abrigo do art. 334º do CCiv., na modalidade de “venire contra factum proprium” positivo (o agente abusador gera a convicção de que não irá praticar certo acto e depois, contra a legítima expectação de conduta, pratica o acto).

II- Não é admissível a revista do segmento decisório do acórdão da Relação que reaprecia e confirma a decisão de condenação em litigância de má fé proferida pela primeira instância, tendo em conta o regime especial de recorribilidade previsto no art. 542º, 3, do CPC para as decisões condenatórias (e não absolutórias) em primeira instância, não podendo, quando se trate de tais decisões, o recurso ultrapassar o patamar de impugnação junto da Relação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em ambas as instâncias foram os Autores condenados em litigância de má fé, dando causa ao pagamento de multa de 10 UCs e de indemnização no montante de € 10.000, em aplicação do art. 542º, 1 e 2, do CPC.

A Relação reapreciou a questão da condenação proferida em 1.ª instância em razão das Conclusões CCCLXVIII a CCCCLXXIII inscritas na apelação.

Trata-se de uma decisão autónoma em relação ao objecto da acção, tomada em incidente cujo julgamento e resultado correspondem a um segmento decisório cindível no dispositivo da sentença proferida em 1.ª instância. Enquanto decisão proferida em incidente sem estrutura e natureza de acção, estamos perante decisão interlocutória com incidência processual, recorrível para a 2.ª instância nos termos do art. 644º, 2, e), e, depois, submetida esta segunda decisão ao regime da revista “continuada” do art. 671º, 2, do CPC [Neste sentido, como regra no contexto da tipologia das decisões interlocutórias submetidas em revista por via do art. 671º, 2, do CPC, v. LOPES DO REGO, “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC – O regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, Gestlegal, Coimbra, 2022, págs. 475-476 e 482: “decisões que se pronunciam acerca de incidentes inseridos na causa principal, admitindo-os ou rejeitando-os”; cfr. ainda, na interpretação do art. 671º, 2, do CPC, LUÍS ESPÍRITO SANTO, Recursos civis. O sistema recursório português. Fundamentos, regime e actividade judiciária, CEDIS, Lisboa, 2020, pág. 283. Na jurisprudência do STJ, V. Acs. de 29/6/2017, processo n.º 2487/07.1TBCBR-C.C1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, 16/5/2023, processo n.º 113/16.7T8VNC-I.G1-A.S, Rel. RICARDO COSTA, 31/5/2023, processo n.º 65/16.3T8VNC-B.G1-A.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, e de 28/6/2023, processo n.º 3080/17.6T8BCL-I.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA; in www.dgsi.pt.] – o que, se fosse o caso, não foi cumprido pelos Recorrentes.

No entanto, a este regime geral acrescenta-se o regime especial do art. 542º, 3, do CPC, estatuindo que, «[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé».

Estamos perante uma previsão para a recorribilidade da decisão condenatória (e não para decisão absolutória) como litigante de má fé: só pode ser objecto de recurso em um grau – da 1.ª instância para a Relação ou desta para o Supremo (enunciativa, a contrario sensu); em contrapartida dessa restriçãoamplia-se a faculdade recursiva, uma vez que é sempre assegurada a admissibilidade do duplo grau de jurisdição sem dependência da verificação do art. 629º, 1, do CPC. [V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina Coimbra, 2018, sub art. 629º, págs. 64-65 e nt. 96, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 594 (“Ainda que o valor da ação supere a alçada da Relação, a parte que tenha sido penalizada não pode interpor recurso de revista que abarque essa questão, regime que compatibiliza a tutela do visado (carecida, nesta parte, de um duplo grau de jurisdição) com a natureza marginal da questão.”), JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021 (reimp.), sub art. 542º, pág. 461 (aparentemente, atendendo à argumentação). Na jurisprudência consolidada do STJ sobre a não admissão do terceiro grau de jurisdição, entre outros, também antes do CPC de 2013, v. os Acs. do STJ de 4/5/2021, processo 2523/19.9T8PRD-E.P1-A.S1, Rel. FÁTIMA GOMES, 19/5/2020, processo n.º 5126/07.7TBSXL.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo o aqui Relator 2.º Adjunto (cfr. ponto II. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 28/11/2017, processo n.º 2398/11.6TBVLG-A.P1.S1, Rel. HÉLDER ROQUE (cfr. pontos II. e III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 19/10/2017, processo n.º 11262/79.0TVLSB-L.L1.S1, Rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA (cfr. ponto IV. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 17/11/2015, processo n.º 2443/11.5TJVNF.G1.S1, Rel. SILVA SALAZAR (in www.stj.pt), 26/6/2014, processo n.º 2733/05.6TBAMT.P1.S1, Rel. TÁVORA VÍTOR (cfr. ponto III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 16/1/2014, processo n.º 1279/08.5TBGRD-N.C1-A.S1, Rel. SÉRGIO POÇAS, 29/10/2013, processo n.º 31038/96.0TVLSB.S1, Rel. FERNANDES DO VALE (in www.dgsi.pt), 21/11/2012, processo n.º 3365/04.1TTLSB.L1.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, 12/7/2011, processo n.º 2375/07.1YXLSB.L1.S1, Rel. GABRIEL CATARINO (in www.stj.pt), 27/5/2010, processo n.º 5387/05, Rel. SOUSA LEITE, e de 20/1/2010, processo n.º 45/04.1TTEVR.E1.S1, Rel. VASQUES DINIS; disponíveis, os sem local de proveniência, in www.dgsi.pt.] [Já não é assim se a decisão de 1.ª instância for absolutória e a decisão de 2.ª instância for condenatória: v. Ac. do STJ de 15/2/2022, processo n.º 1246/20.0T8STB.E1.S1, Rel. MARIA JOÃO TOMÉ, in www.dgsi.pt (“Admite-se assim o recurso [de] revista no caso de a Recorrente haver sido condenada por litigância de má fé apenas pelo TR, uma vez que o Tribunal de 1.ª Instância tinha julgado improcedente este pedido de condenação (…).”: ponto I. do Sumário); na doutrina, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Litigância de má-fé, abuso do direito de ação e culpa “in agendo”, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pág. 68 (não assim no caso de “não-condenação, apesar de pedida”).] 

Tal significa que: (i) se a condenação provier da 1.ª instância, o recurso (e a garantia do duplo grau de jurisdição) é sempre admissível para a Relação sem dependência do art. 629º, 1 (seguindo o art. 644º, 2, e), CPC); (ii) se a condenação for decretada pela primeira vez pela Relação, admite-se recurso para o STJ, independentemente ainda do valor da condenação em relação aos critérios do art. 629º, 1, do CPC, assim como sem dependência do regime do art. 673º para as decisões interlocutórias “novas” (o que se encontra devidamente salvaguardado na respectiva al. b)); (iii) se a condenação for proferida em primeira mão pela 1.ª instância e reapreciada em recurso pela Relação, não é admitida a revista, seja qual for a decisão em segunda mão pela 2.ª instância (sem prejuízo de, estando aqui presente uma irrecorribilidade legal por «motivo estranho à alçada do tribunal», se poder ponderar a aplicação do art. 629º, 2, d), do CPC).

Assim sendo, tendo os Autores sido condenados como litigantes de má fé em 1.ª instância e tendo essa condenação sido confirmada pela Relação, encontra-se esgotada, uma vez não convocado qualquer regime de revista extraordinária, a possibilidade de tal questão ser objecto de revista, independentemente da sorte e resultado da impugnação (nos outros segmentos) do acórdão recorrido onde foi reapreciada e confirmada a condenação de 1.ª instância, não podendo aqui ser conhecido tal segmento decisório, correspondente à Conclusão 75. da revista."

[MTS]

18/04/2024

Jurisprudência 2023 (153)


Litigância de má fé;
falta de fundamentação; alteração da verdade


I. O sumário de RE 14/9/2023 (20469/19.9T8SNT.E1) é o seguinte:

1. De acordo com o disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC, a rejeição, total ou parcial, do conhecimento do recurso depende da reação posterior do recorrente em relação ao convite ao aperfeiçoamento, que tanto pode traduzir-se em pura inércia, como na apresentação de nova peça processual sobre a qual, depois da eventual resposta do recorrido, incidirá a análise do Relator, a fim de verificar se os vícios apontados foram ou não corrigidos.

2. Por razões de justiça material, celeridade, eficácia e de prevalência da justiça material sobre a justiça formal, a rejeição do recurso após ter sido aceite o convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso deve pautar-se por critérios de razoabilidade e parcimónia devendo ser utilizada, tão só, quando não for de todo possível, ou for muito difícil, determinar as questões submetidas à apreciação do tribunal superior ou ainda quando a síntese ordenada se não faça de todo.

3. Ocorre litigância de má-fé quando a parte deduz pedido reconvencional omitindo e alterando factos e, consequentemente, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que dessa alegação sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença condenou os Réus como litigantes de má-fé, com a seguinte fundamentação:

«Cotejada a decisão de facto acima exposta, verifica-se que a versão apresentada pelos réus não encontrou qualquer conforto na prova produzida, defluindo dela manifestamente que: (i) o 1.º réu não permitiu a entrada do legal representante da autora na obra, o que afasta a tese do abandono e (ii) as partes acordaram em dar sem efeito a cláusula que continha a sanção pelo atraso na execução da obra - cfr pontos 61) e 64) dos factos provados.

Por outro lado, tratam-se de factos pessoais dos réus, dos quais os mesmos não podiam deixar de ter conhecimento, uma vez que foram praticados e presenciados pelos próprios.

Desta feita, a conduta processual dos réus acima descrita consubstancia a previsão legal da norma contida no artigo 542.º n.º 2 al. a) e b) do C.P.C., porquanto os mesmos deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, alterando a verdade dos factos.

Diga-se, ainda, que a condenação da parte como litigante de má-fé não depende exclusivamente de uma conduta processual dolosa, bastando para o efeito a demonstração de que a parte estava obrigada a ter consciência dos factos em causa – conforme sucede manifestamente nos presentes autos. (…)

Face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.ºs 1 e 2, al.s. a) e b) do C.P.C. e 27.º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, deverão os réus ser considerados litigantes de má-fé, devendo, em consequência ficar obrigado ao pagamento de uma multa no valor de 20 (vinte) UC, o que perfaz a quantia de 2.040,00€ (dois mil e quarenta euros), atendendo ao valor dos bens jurídicos em causa e ao grau de ilicitude e culpa da conduta em censura.»

Na Conclusão i), alegam os recorrentes, em desacordo com a sentença, que não litigam de má-fé, «(…) pois não deduzem pretensão cuja falta de fundamento ignoram, nem fazem do processo um uso anormal e abusivo, como decorre do que se deixou dito supra quanto ao contrato de empreitada assinado pelo R. marido e alteração unilateral do mesmo pela A. sem qualquer consentimento ou acordo do R. e o facto de ele não ter junto a cópia do contrato que tinha por não a encontrar não deve contribuir para que daí se retire a conclusão de que está a ocultar factos ao processo, já que, como se referiu supra ele reiterou que o contrato assinado não estava rasurado, resultando das regras da experiência comum que ninguém assina um contrato rasurado sem que ressalve tal facto.»

Vejamos, então, se lhes assiste razão.

Na atuação processual estão as partes vinculadas aos deveres de probidade e de cooperação, agindo de boa-fé, com brevidade e eficácia, de forma a alcançar-se a justa composição do litígio (artigos 7.º a 9.º do CPC).

A condenação da parte como litigante de má-fé obedece aos pressupostos legais mencionados no artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) a d), do CPC, abrangendo a sanção tanto o dolo como a negligência grave, aí se encontrando contempladas várias situações subsumíveis ao conceito de litigância de má-fé, violadoras dos referidos deveres.

Assim, atua com má-fé material/substancial a parte que, com dolo ou negligência grave, viola conscientemente o dever de verdade, ao deduzir pretensão ou oposição que sabe ou não podia deixar de saber, ser ilegítima, distorce ou deturpa a realidade de si conhecida ou omite factos relevantes, também por si conhecidos, para a decisão; atua com má-fé instrumental a parte que fizer do processo uso manifestamente reprovável, visando um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Todavia, não corresponde a litigância de má-fé a dedução de pretensão ou oposição em que se decaí por mera fragilidade da prova ou por não lograr-se convencer o tribunal de determinada realidade trazida a julgamento, bem como as situações que resultam de discordâncias na interpretação e aplicação da lei aos factos.

Assim, a proposição de uma ação, a apresentação de uma contestação, a dedução de reconvenção ou a interposição de um recurso, com fundamento jurídico que não se conseguiu demonstrar, não constituiu uma atuação dolosa ou mesmo gravemente negligente da parte, considerando as inúmeras variáveis em confronto, posto que não se apure uma postura da parte conscientemente infundada.

Todavia, a litigância de má-fé não se pode afastar quando a parte deduz pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, impondo-se-lhe a obrigação de previamente tentar indagar do fundamento alegado. Muito menos quando conscientemente altera a realidade dos factos, alegando-os de forma deturpada ou omitindo alguns dos aspetos revelantes da realidade alegada.

Como se refere no Acórdão do STJ 02-02-2023 (analisando a evolução normativa da previsão sobre a litigância de má-fé):

«Da redacção do referido artº 456º CPCiv anterior à revisão de 95 do Código, para a actual redacção, a expressão “que não devia ignorar” inculca que se passou de um regime de intenção maliciosa ou gravemente negligente (regime de 61 – má fé em sentido psicológico) para um regime que abrange na respectiva previsão a leviandade ou a imprudência manifestas (má fé em sentido ético).

Trata-se assim, no fundo de um regresso à concepção de má fé originária, do Código de Processo Civil de 1939, o qual, na ideia de J. Alberto dos Reis, sancionava a pretensão ou oposição cuja falta de fundamento “o agente não pudesse razoavelmente desconhecer” (assim, Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé e Abuso de Direito de Acção, 2006, pg. 23).»

Nesta linha de análise, refere-se no Acórdão do STJ de 12-04-2023 [Proc. n.º 1915/11.6TBALM-A.L1.S1 (Jorge Arcanjo), em www.dgsi.pt]:

«Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. Por isso, actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Acresce que o dever de verdade processual (alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão ( dever de pré-indagação).»

No caso, o tribunal a quo reconduziu a situação à previsão normativa do n.º 2, alíneas a) e b) do artigo 542.º, do CPC, que dispõem do seguinte modo:

«2. Diz-se litigante de má-fé que, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.»

Da análise dos articulados não nos suscita dúvida que os Réus litigam de má-fé por terem, simultaneamente, alterado e omitido parte dos factos relevantes para a boa decisão da causa e, com base nesse comportamento, terem deduzido uma pretensão cuja falta de fundamento sabiam, ou não podiam ignorar, reconduzindo-se tal comportamento processual à situação prevista no normativo acima referido.
No caso, deduzindo reconvencional alegando factos que não correspondem à realidade e omitindo outros que não podiam desconhecer.

Concretizando.

A causa de pedir do pedido reconvencional assenta nos seguintes fundamentos: (i) a Autora incorreu na penalização prevista no contrato por ter excedido o tempo de execução da obra; (ii) a Autora abandonou a obra não eliminando os defeitos; (iii); A conduta da Autora causou aos Réus danos de natureza não patrimonial.

Ora, se em relação aos fundamentos referidos em (i) e (iii), os Réus alegaram factos que vieram a provar-se não corresponder à realidade, mas que, ainda assim, pode tal resultar de dificuldades de prova não se podendo, com segurança, enquadrar a situação numa atuação intencionalmente dolosa ou gravemente negligente da parte, já em relação à factualidade referida em (ii) a questão coloca-se de modo diverso, uma vez que os Réus alegaram o abandono da obra e a não eliminação de defeitos por causa imputável à Autora, omitindo parte da realidade, ou seja, que foi o Reu quem impediu a Autora de entrar na obra a fim de verificar os defeitos (cfr. artigo 53.º da contestação), o que veio a ficar provado (cfr. ponto 64 dos factos provados).

Sublinhe-se que em relação a esta factualidade não se trata de falta ou de dificuldade de prova, mas sim de omissão pura e simples de alegação da factualidade relevante com o gravame de ter sido alegada realidade diversa. Sendo que o impedimento oposto pelo Réu à Autora para esta entrar na obra são factos de natureza pessoal que os Réus não podiam ignorar, nem desconhecer, e muito menos fundamentar o pedido reconvencional com base numa alegação deturpada da realidade.

Ou seja, os Réus não só omitiram factos, como os alteraram, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podiam razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que deles sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação, como bem refere a sentença recorrida, na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.

Nestes termos, nenhuma censura merece a sentença recorrida no concernente à condenação dos Réus como litigantes de má-fé."

[MTS]