"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/05/2024

Jurisprudência 2023 (171)


Competência internacional;
Reg. 2201/2003


1. O sumário de RE 28/9/2023 (917/22.1T8TMR.E1) é o seguinte:

I. O Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, ainda em vigor à data da propositura da acção, uniformiza no território da União Europeia as regras de competência internacional e as normas sobre o reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, fazendo parte de um conjunto de instrumentos legislativos da União em matéria de relações privadas internacionais de natureza familiar e sucessória.

II. No que concerne à competência em “questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento” o nº1 do art.º 3º do dito Regulamento elenca sete critérios atributivos de competência internacional que são alternativos, i.e. vigora o princípio de tratamento paritário de todos estes critérios atributivos de competência internacional;

III. Tendo a Autora nacionalidade portuguesa e sendo a sua residência habitual em território nacional nos seis meses anteriores à data da sua propositura, poderia optar por interpor [sic] a acção de divórcio num Tribunal Português que assim era, e é, internacionalmente competente para conhecer do pedido pela mesma formulado.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"4. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:

1- No dia 11 de outubro de 2018, na Dinamarca, AA e BB casaram um com o outro, mediante celebração de casamento civil sob o regime imperativo da separação de bens.

2- Esse casamento está registado no assento de casamento n.º … do ano 2019 da Conservatória do Registo Civil de ….

3- AA tem nacionalidade portuguesa.

4- BB tem nacionalidade indiana.

5- AA reside em Portugal.

6- BB reside em Inglaterra, Reino Unido.

7- Após a data referida em 1 Autora e Réu encontram-se várias vezes, mas não residiram juntos na mesma casa desde, pelo menos, final de janeiro de 2019.

8- E não pernoitaram juntos desde essa data.

9- Não tomaram refeições juntos desde essa data.

10- Não mantêm relação de convívio desde essa data, embora tenham mantido várias comunicações entre si, à distância.

11- Desde março de 2019 que Autora vive com CC, juntos na mesma casa, embora desde então tenham residido sucessivamente em várias casas.

12- A Autora e CC partilham, desde o referido mês de março, refeições, cama, vida quotidiana e relação afetiva.

13- A Autora e CC têm dois filhos comuns: DD, nascido em …/05/2020, e EE, nascido em …/11/2021.

14- A Autora tem o propósito de não viver com o Réu e de viver com CC.

15- O Réu reside e trabalha em Inglaterra, Reino Unido, desde data não apurada posterior a outubro de 2018.

16- O Réu pretende manter-se casado com a Autora e quer viver quotidianamente com esta.

17- A petição inicial foi apresentada em juízo em 1 de junho de 2022.

 2. Do mérito do recurso

Inconformado com o desfecho da acção, enveredou o réu, ora apelante, por suscitar em sede de recurso [---] a incompetência internacional do Tribunal para conhecer do pedido de divórcio intentado pelo seu cônjuge.

Em vão, é certo, já que o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, ainda em vigor à data da propositura da acção [---], não dá qualquer acolhimento à sua pretensão.

Com efeito, apesar de o réu, ora apelante, ser de nacionalidade indiana e residir em Inglaterra, o certo é que a Autora é portuguesa e reside em Portugal desde, pelo menos, Março de 2019 (cfr. supra 4.3., 4.5.e 4.11).

O citado Regulamento (conhecido como Bruxelas II bis) uniformiza no território da União Europeia as regras de competência internacional e as normas sobre o reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, fazendo parte de um conjunto de instrumentos legislativos da União em matéria de relações privadas internacionais de natureza familiar e sucessória.

No que concerne à competência em “questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento” estabelece o nº1 do art.º 3º do dito Regulamento que a mesma se defere aos tribunais do Estado-Membro:

“a) Em cujo território se situe:

- a residência habitual dos cônjuges, ou

- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou

- a residência habitual do requerido, ou

- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu 'domicílio';

b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do 'domicílio' comum.”.

Tem-se entendido que “nenhum dos sete critérios atributivos de competência internacional prevalece sobre os restantes, não havendo, portanto, uma hierarquização dos critérios. Todos os critérios são colocados a um nível paritário e a paridade entre eles permite qualificá-los como critérios alternativos, no sentido em que são de aplicação concorrente, isto é, um mesmo divórcio transnacional pode preencher dois ou mais dos critérios de competência internacional previstos no citado art. 3º , podendo, assim, os tribunais de dois ou mais Estados-Membros ser internacionalmente competentes para julgar o litígio”. [Cfr. Acórdão do STJ de 7.10.2020 (Rosa Tching).]

Ora, não existindo nenhuma hierarquia e, por conseguinte, nenhuma ordem de precedência entre os critérios atributivos de competência internacional em matéria matrimonial previstos no art. 3º, nº1, als. a) e b) do Regulamento nº 2201/2003, temos que no caso se mostra preenchido, pelo menos, um deles : o atinente à residência habitual da Autora em território nacional nos seis meses anteriores à data do pedido conjugado com a circunstância de a mesma ter nacionalidade Portuguesa.

De acordo com o princípio de tratamento paritário de todos estes critérios atributivos de competência internacional, estava, pois, deferido à autora optar por interpor a acção de divórcio num Tribunal Português que assim era, e é, como logo se antecipou, internacionalmente competente para conhecer do pedido pela mesma formulado."

[MTS]


15/05/2024

Bibliografia (1127)


-- Supremo Tribunal de Justiça (Ed.), Tribunais e Inteligência Artificial – Uma Odisseia no século XXI» (Lisboa 2023) [OA]


Jurisprudência 2023 (170)


Petição inicial;
distribuição; recusa; reclamação


1. O sumário de RL 17/10/2023 (13584/21.0T8SNT-A.L1-1é o seguinte:

I- O prazo de 30 dias para a propositura da ação a que se refere o artigo 59.º. n.º 2 do CSC é um prazo de caducidade, de natureza substantiva e civil, como decorre da interligação entre os artigos 279.º, als. b) e e), 296.º e 298.º, n.º 2, do Código Civil.

II- Por ser assim, na contagem de tal prazo não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr, no caso dos autos, a assembleia geral extraordinária onde foram tomadas as deliberações impugnadas.

III- A apresentação a juízo dos atos processuais é realizada por via eletrónica, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição, nenhum ato sendo admitido à distribuição se não contiver todos os requisitos externos exigidos por lei, verificação que é efetuada através de meios eletrónicos (artigo 207.º do CPC).

IV- Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos, tal como decorre dos n.ºs 1 e 10 do artigo 144.º do CPC e artigo 7.º n.º 2 da Portaria 280/13 de 26/08.

V- Se existindo essa desconformidade, que determinou a recusa da p.i. por parte da secretaria à luz do artigo 558.º do CPC, em momento prévio à distribuição, o juiz de turno à mesma, em face da posição entretanto assumida pela ilustre mandataria do autor nos autos, considerou que havia sido pedida a respetiva correção do formulário nos termos do artigo 7.º n.º 3 da Portaria n.º 280/2013 de 26/08 (despacho que não foi objeto de qualquer impugnação ou reparo), determinando que o expediente apresentado fosse distribuído, assim obstando à recusa da p.i., terá de se considerar a mesma intentada na data da sua apresentação inicial a juízo.

VI- Pois que apenas se poderia considerar recusada a petição inicial, dando-se baixa na distribuição, decorrido que fosse o prazo para reclamação da recusa, ou, havendo reclamação, após o trânsito em julgado da decisão que confirmasse o seu não recebimento, tal como decorre do n.º 3 do artigo 17.º da mencionada Portaria, o que não foi, de todo, o caso dos autos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"(ii) Da data da apresentação da Petição Inicial, invocada recusa e sua distribuição:

Em segunda frente de batalha, defende a apelante que o Tribunal a quo procedeu, igualmente, a uma errónea aplicação dos artigos 193.º, 590.º n.º 1 e 560.º todos do CPC, ao considerar que a ação deu entrada no tribunal em 15/09/2022, quando, na verdade, por erro do autor, a mesma foi recusada e a sua distribuição retida dada a desconformidade do formulário Citius.

Tendo sido recusada a petição naquele dia, qualquer outro ato praticado para a sua conformidade, foi já praticado decorrido o prazo de caducidade, tanto mais que o despacho que admitiu a correção foi proferido já a 21/09/2021.

Assim, argumenta a recorrente, em face do consagrado no artigo 259.º n.º 1 e do artigo 560.º do CPC, a recusa da P.I. apresentada a 15/09/2021, permitiu que se operassem os efeitos da caducidade, e por via disso não pode prevalecer, também como argumento de improcedência da exceção invocada pela apelante, a consideração de que a ação deu entrada em juízo a 15/09/2021.

Vejamos se assim é.

Estando nós, como vimos, perante um prazo de caducidade, como vimos já, é sobre a ré que impende o ónus de alegar e demonstrar que o direito do autor caducou, dado que se trata de facto extintivo do direito do mesmo, à luz do n.º 2 do artigo 342.º do CC.

No caso dos autos, como vimos, a petição apresentada em 15/09/2021 (onde foi aposto no formulário que a submeteu: Forma de processo/classificação: outra forma de processo; Espécie: a determinar; Objeto de ação: outro ou não especificado (comércio)) foi recusada pela secretaria, que invocou para o efeito, o artigo 558.º do CPC, devolvendo a petição ao autor.

Reagindo contra esse ato de recusa, em requerimentos dirigidos à secretaria do tribunal e aos serviços informáticos, a ilustre mandatária do autor veio argumentar falhas informáticas no sistema Citius, dizendo que o sistema aceitou a petição conforme por si estava preenchida, tanto assim que gerou uma referência, não fazendo sentido a ação ter sido retida na distribuição.

Por despacho do juiz de turno à distribuição foi considerado que, como fora pedida a correção do formulário, nos termos do artigo 7.º n.º 3 da Portaria n.º 280/2013 de 26/08 (dado que a sua inicial desconformidade com o conteúdo da peça processual apresentada motivara a recusa da petição inicial pela Secretaria, à luz dos artigos 207.º e 558.º n.º 3 do CPC), nada impedia, e assim foi determinado, que a distribuição do expediente apresentado o fosse como ação comum.

O autor apresentou depois novo formulário corrigido, acompanhado com a p.i., em 23/09/2021 (onde foi aposto: Forma de processo/classificação: ação de processo comum; Espécie: anulação de deliberações sociais; Objeto de ação: impugnação de deliberações sociais (comércio)).

Está agora em causa saber se podemos considerar que a ação foi proposta no dia 15/09/2021, conforme pretende o autor, ou apenas no dia 23/09/2021, como defende a ré.

Determina o artigo 259.º n.º 1 do CPC que a instância se inicia pela proposição da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que a respetiva petição se considere apresentada nos termos dos n.ºs 1 e 6 do artigo 144.º.

A apresentação a juízo dos atos processuais é realizada por via eletrónica, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição, nenhum ato sendo admitido à distribuição se não contiver todos os requisitos externos exigidos por lei, verificação que é efetuada através de meios eletrónicos (artigo 207.º do CPC).

Constitui assim obrigação do apresentante o preenchimento da informação específica que o sistema de informação preveja, pois que, em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos, tal como decorre dos n.ºs 1 e 10 do aludido artigo 144.º do CPC.

O n.º 10 do 144.º replica assim o artigo 7.º n.º 2 da Portaria 280/13 de 26/08, devendo, contudo, tal regime articular-se com o disposto no artigo 146.º n.º 2 do CPC, e n.º 3 daquele artigo 7.º, facultando-se à parte a retificação do lapso (quando, por exemplo, tenha feito constar o rol de testemunhas do anexo, omitindo-o no formulário ou permitindo-se ainda a correção de lapso no preenchimento dos formulários, tendo em conta o conteúdo dos ficheiros anexos, nos termos do artigo 10.º n.º 10 al. b) do CPC e 7.º n.º 3 da Portaria, apenas se exigindo que a falta cometida não radique em dolo ou culpa grave da parte - ver CPC anotado por António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Vol. I, 2ª edição, Almedina, págs. 183 e 187).

A apresentação da petição nos moldes assim consagrados constitui, pois, o único meio de obstar à caducidade do direito substantivo que com a causa se pretende fazer valer (artigo 331.º n.º 1 do CC).

Acresce que, nos termos consagrados no artigo 558.º do mesmo código, a petição inicial pode ser recusada pela secretaria em diversos casos, e, dentro deles, no que ao caso agora interessa, se não for indicada a forma do processo (al. d)), sendo que a verificação dos fundamentos de rejeição é efetuada pelo sistema, ou, quando tal não seja tecnicamente possível, pela secretaria, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º. Tendo a petição inicial que observar determinadas formalidades legais, a sua rejeição, em caso de assim não ser, é, em regra, automática, apenas exigindo justificação por escrito quando a verificação dos requisitos formais de recusa seja feita pela secretaria nos termos do n. 3.

Nos casos de recusa, regula então o artigo 560.º do CPC que Quando se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, a parte não esteja patrocinada e a petição inicial seja apresentada por uma das formas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 7 do artigo 144.º, o autor pode apresentar outra petição ou juntar o documento a que se refere a primeira parte do disposto na alínea f) do artigo 558.º, dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, considerando-se a ação proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo.

Tal preceito, em face da sua atual redação, e contrariamente ao sistema anterior (que permitia sempre uma nova petição, a apresentar em 10 dias, que corrigisse aquilo que fundara a sua recusa) restringe agora tal possibilidade às ações em que, não sendo obrigatória a constituição de advogado, o autor não está patrocinado e apresenta a petição por uma das vias do n.º 7 do artigo 144.º. Esta nova redação tem recebido maiores reservas, desde logo quando está em causa o prazo de caducidade do direito que pode redundar na sua extinção (ver críticas anotadas por António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, na obra citada, pág. 648 e por Teixeira da Sousa em https://blogipcc.blogspot.com, “A (muito estranha) nova redação do art.º 560.º CPC”; tendo tomado posição, no sentido da inconstitucionalidade do regime constante do dito preceito,  João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, p. 15).

Revertendo aos autos, verificamos que a recusa da petição inicialmente apresentada em 15/09/2023 não foi objeto de recusa eletrónica imediata, gerando uma referência Citius, tendo, ainda assim, sido recusada pela secretaria, que entendeu que o formulário apresentado era insuficiente, por não indicar a espécie da causa (artigo 212.º do CPC), razão pela qual devolveu aquela petição ao autor.

Em face dos protestos do autor (que, em bom rigor, não dirigiu qualquer reclamação ao juiz, como devia, tendo em atenção o consagrado no artigo 559.º do CPC), o expediente foi levado ao conhecimento do juiz de turno à distribuição no dia 21/09/2021, que considerou, pela análise do conteúdo material da peça em causa, que estava perante uma ação comum, pelo que, em face da desconformidade entre o formulário e o conteúdo, entendendo que havia sido pedida a respetiva correção nos termos do artigo 7.º n.º 3 da Portaria n.º 280/2013 de 26/08, determinou que o expediente apresentado fosse distribuído na 1ª espécie, isto é, como ação comum, tendo em conta o objeto da ação como sendo comércio (despacho que não foi objeto de qualquer impugnação ou reparo).

Após esse despacho de 21/09/2021, o autor entregou novo formulário, datado agora de 23/09/2021, com a documentação comprovativa da remessa da peça em 15/09 e toda a tramitação subsequente.

Donde, em bom rigor, o despacho do juiz de turno, ao determinar a distribuição, contrariamente ao defendido pela recorrente, não confirmou a recusa da p.i.. Veja-se que, ainda que não em reclamação dirigida ao juiz (mas sim ao chefe da secretaria do tribunal e aos serviços informáticos), a questão da recusa do recebimento da petição inicial foi apreciada pelo juiz de turno à distribuição, que, ainda que na fundamentação afirme que a secretaria tinha razão para recusar a petição, acaba por não confirmar a mesma, pois que determina a sua distribuição (veja-se que, nos termos do n.º 3 do artigo 17.º da Portaria 280/2013, apenas se considera recusada a peça que, decorrido que seja o prazo para reclamação da recusa, ou, havendo reclamação, após o trânsito em julgado da decisão que confirme o não recebimento).

Não há assim que recorrer ao enquadramento jurídico feito no despacho em crise (pois que não estamos perante um erro na forma do processo tratável à luz do invocado artigo 193.º do CPC, nem estamos perante causa que não importe a constituição de mandatário e que a parte não esteja patrocinada nem perante uma recusa de recebimento ou de distribuição da petição, nem de decisão judicial que a haja confirmado, como decorre do artigo 560.º do CPC).

Não obstante, ainda que com diferente fundamentação, não podemos deixar de considerar, em face do concreto despacho do juiz de turno, que não foi impugnado de qualquer forma, que este permitiu a distribuição da p.i. de 15/09/2021, pelo que a presente ação terá sempre de ser considerada como tendo sido interposta nessa data, entendendo o juiz de turno que o autor pedira a retificação do formulário, assim obstando à recusa da p.i.

Seria mesmo desproporcionado e totalmente irrazoável que, em face de toda a tramitação processual - em que a secretaria entendeu recusar a petição inicial, não a submetendo à distribuição na data em que foi apresentada, o que depois foi retificado pelo juiz de turno à distribuição, que a determinou - se pudesse afirmar ou confirmar o entendimento que a petição inicial não fora apresentada em tempo pelo autor."

[MTS]

14/05/2024

Bibliografia (1126)


-- Philipp Reuß / Benedikt Windau (Eds.), Digitale Verhandlung – Digitalisierung des Internationalen Zivilverfahrensrechts – Beschleunigtes Online-Verfahren – Elektronischer Rechtsverkehr und Bürgerzugang (Universität Göttingen: Göttingen 2022) [OA]



Da impugnação da decisão de indeferimento liminar da petição inicial; breve resenha histórica




[Para aceder ao texto clicar em Urbano Aquiles L. Dias]


Jurisprudência 2023 (169)


Simulação;
prova testemunhal; começo de prova


1. O sumário de RP 25/9/2023 (5189/22.5T8VNG.P1) é o seguinte:

I - A nulidade do negócio simulado pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.

II - Não tem legitimidade substantiva, não é titular do direito a invocar a nulidade por simulação de doação o herdeiro legitimário do doador que não alega que esse negócio foi feito com a intenção de o prejudicar e, ao invés, afirma que tal negócio foi feito com a intenção de prejudicar os credores do doador, esvaziando-lhes a garantia patrimonial dos seus créditos.

III - A doutrina maioritária e a jurisprudência têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º do Código Civil, admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito.

IV - Tem-se entendido que esta prova adminicular documental corroboradora da prova pessoal livremente apreciada deve ser proveniente da parte contra quem é oposta e deve tornar verosímil o facto alegado.

V - A outorga de transação pelo autor doador e pelo réu donatário em ação de impugnação pauliana instaurada por credor sem que na mesma seja invocada a nulidade do ato impugnado não constitui princípio de prova documental de simulação absoluta da doação impugnada nesses autos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.2 Da existência de princípio de prova documental da simulação

No que respeita esta questão recursória, os recorrentes referem nas suas conclusões de recurso o seguinte:

ii O 1º A. juntou um documento na petição (nº 3, não examinado na douta sentença), segundo o qual em acção de impugnação pauliana, ambos os simuladores aceitaram perante o credor a “validade da impugnação”, ou seja, admitiam a invalidade do acto de doação, e por isso punham à sua disposição parte dos bens doados que entre eles acertaram;

v. Um dos sentidos que daqui é lícito extrair é o de que o acto de doação foi viciado, com o fim de enganar terceiros; ainda o facto de o A. ter escolhido um filho para transmitir todos os seus bens é ainda um indício de que nele depositava confiança para uma futura reversão, o que reforça ainda mais a simulação;

vi. Portanto, deve entender-se que tal documento, assinado pelos simuladores e com todos os requisitos probatórios, dispõe da faculdade de constituir um princípio de prova, a completar com as restantes”.

Na resposta ao recurso o recorrido sustenta que o documento nº 3 oferecido pelos autores com a petição inicial não envolve qualquer confissão de que a doação celebrada em 22 de dezembro de 2015 foi simulada.

Cumpre apreciar e decidir.

A decisão recorrida foi proferida logo após o termo dos articulados e de acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 595º do Código de Processo Civil, ou seja, porque a Exma. Colega autora da decisão recorrida entendeu que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total dos pedidos deduzidos [---].

Entendeu-se que relativamente ao autor AA não tinha sido oferecido qualquer documento que constitua princípio de prova e que permita que a simulação negocial arguida possa ser provada sem as peias decorrentes do nº 2 do artigo 394º do Código Civil.

Vejamos.

De acordo com o disposto no nº 1, do artigo 394º do Código Civil, “[é] inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas deles, quer sejam posteriores.”

Sublinhe-se que a proibição de prova por testemunhas de convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento com força probatória plena, que sejam contrárias ou adicionais ao conteúdo desse documento, pressupõe a validade das cláusulas em apreço [
Esta limitação probatória incide sobre as estipulações verbais acessórias que se possam considerar válidas (vejam-se os artigos 221º e 222º, ambos do Código Civil e o Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa 2014, página 891, anotação IV; em sede de trabalhos preparatórios, já o Sr. Professor Vaz Serra fazia esta distinção, como se vê da leitura do que escreveu in Provas (Direito Probatório Material), separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa 1962, páginas 534 e 535, nº 133).].

As limitações probatórias à produção da prova testemunhal são extensivas à prova por presunções (artigo 351º do Código Civil) e, por identidade de razão, à prova por declarações de parte, sempre que sujeitas à livre apreciação do tribunal, ou seja, quando não tenham caráter confessório (artigo 466º, nº 3, do Código de Processo Civil) e ainda à prova por confissão quando seja livremente apreciada (vejam-se os artigos 358º, nºs 3 e 4 e 361º, ambos do Código Civil).

Esta proibição de produção de prova testemunhal e, reflexamente, da prova por presunção (artigo 351º do Código Civil), bem como da prova por declarações de parte e por confissão, nos termos antes enunciados, aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores, não sendo aplicável a terceiros (nºs 2 e 3, do artigo 394º do Código Civil).

A doutrina maioritária [---] e a jurisprudência [---] têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º, do Código Civil [---], admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito [---].

Tem-se entendido que esta prova adminicular documental corroboradora da prova pessoal livremente apreciada deve ser proveniente da parte contra quem é oposta e deve tornar verosímil o facto alegado.

O documento nº 3 oferecido pelos autores com a petição inicial é cópia de uma ata de audiência final no processo nº 17997/20.7T8PRT do Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, Comarca do Porto, realizada no dia 13 de setembro de 2021, pelas 14 horas, em que foi autor EE e réus AA e CC, achando-se presentes os réus, a Sra. Advogada do autor munida de poderes especiais e o Sr. Patrono dos réus, tendo os Senhores Advogados e os réus declarado que transigiam nos seguintes termos:

“1. O primeiro Réu confessa-se devedor ao Autor da quantia de 150.000,00 euros (cento e cinquenta mil euros) acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 22/07/2019 até integral pagamento.

2. Os réus confessam o pedido e em consequência reconhecem a válida impugnação da doação identificada nas alíneas 5, 6 e 7 da petição inicial e em consequência reconhecem ao Autor o direito de executar no património do 2º. Réu os bens imóveis identificados nas referidas alíneas, a saber:

5) Prédio urbano (terreno para construção) sito na Rua ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº. ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ...;

6) Prédio urbano (terreno para construção) sito na Rua ..., Lugar ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº. ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ...;

7) Prédio rústico “...”, freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ....

3. As custas serão a cargo dos Réus.”

Seguidamente, a Sra. Juíza que presidia à audiência final proferiu a seguinte sentença:

“Na presente acção em que é Autor EE e Réus AA e CC, atenta a qualidade e poderes dos interveniente e a disponibilidade do objecto da lide, considero válida a transacção que antecede, por versar sobre matéria de direitos disponíveis e provir dos sujeitos da relação material controvertida, pelo que, nos termos dos artigos 283.º, n.º 2, 284.º e 290.º, n.º 4, todos do Código de Processo Civil homologo pela presente sentença o antecedente acordo, condenado as partes a cumprir o clausulado nos seus precisos termos.

Em face do acordado quanto a custas, dado que os réus beneficiam de apoio judiciário, abra vista ao Ministério Público (art.º 537º, nº2 do Código de Processo Civil).

Registe notifique.”

O documento nº 3 foi oferecido expressamente [---] para prova do alegado pelos autores no artigo 9 da petição inicial que tem o seguinte conteúdo:

E foi no contexto desta ação pauliana que, o património que ainda não havia sido vendido a terceiros, revertou [sic] para a esfera jurídica do Autor AA, com excepção da fração autónoma designada pela letra “A” – cave, pertencente ao prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...- ..., inscrito na matriz sob o art.º ....

A questão que neste momento importa colocar é a seguinte: com a transação que se acaba de reproduzir é lícito afirmar que os réus nessa ação (o autor AA e o réu nestes autos) confessam que a doação impugnada por via de impugnação pauliana foi simulada?

A nosso ver, a resposta a esta interrogação implica a análise da petição inicial do processo em que se verificou a referida transação já que a impugnação pauliana não implica necessariamente a nulidade do ato impugnado, embora a nulidade do ato não seja obstáculo à impugnação pauliana (veja-se o nº 1 do artigo 615º do Código Civil).

Ora, o réu ofereceu cópia da petição inicial oferecida na referida ação, cópia que não foi impugnada pelos ora recorrentes e da sua leitura resulta inequívoco que não foi nessa ação suscitada a nulidade por simulação da doação impugnada.

Ao contrário do que pressupõem os recorrentes, o reconhecimento da “válida impugnação” pauliana relativamente a alguns dos bens doados não significa que o negócio mediante o qual operou a transmissão para a esfera jurídica do donatário desses bens padeça de uma qualquer invalidade, nomeadamente de nulidade por simulação absoluta.

Pelo contrário, em regra, a impugnação pauliana implica a validade do ato transmissivo e visa apenas desconsiderar essa transmissão relativamente ao credor afetado na sua garantia patrimonial (veja-se o nº 4 do artigo 616º do Código Civil), facultando-lhe a execução dos bens transmitidos na esfera jurídica do transmissário (veja-se o nº 1 do artigo 616º do Código Civil).

Por isso, neste circunstancialismo é evidente que o aludido documento nº 3 oferecido pelos autores não constitui qualquer começo de prova da simulação negocial absoluta invocada pelos autores nestes autos e, por isso, não tinha de ser relevado, como não foi, pelo tribunal recorrido.

Pelo exposto, improcede também esta questão recursória, devendo confirmar-se a decisão recorrida, nos segmentos impugnados, respondendo os recorrentes pelas custas do recurso porque este improcedeu totalmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil)."

[MTS]


13/05/2024

Jurisprudência 2023 (168)


"Factos conclusivos";
delimitação; thema decidendum*

I. O sumário de RP 25/9/2023 (13265/18.2T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.

II - Do regime legal de citação decorre: a)- ser equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato; b)- que, em tal situação presume-se, salvo prova em contrário, ter tido o citando oportuno conhecimento do conteúdo da mesma; c) que no caso de citação de pessoa singular, através de carta registada com aviso de receção, esta pode ser entregue a qualquer pessoa (terceiro) que se encontre na residência ou local de trabalho do citando, desde que declare encontrar-se em condições de lha entregar prontamente; d)- nesta situação, a citação considera-se efetuada na própria pessoa do citando, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta de citação foi oportunamente entregue àquele.

III - A presunção de entrega ao destinatário, de natureza ilidível, prevista no n.º 1 do artigo 238.º do (presentemente, artº. 230.º) e no nº. 4, do artº. 233º (presentemente 225.º), ambos do CPCivil de 1961 (na redação à data vigente), apenas funciona caso se cumpram todos os pressupostos de tal entrega, nomeadamente, e no que ora importa, a sua feitura ou ocorrência, no lugar próprio (residência ou local de trabalho), legalmente enunciado.

IV - Todavia, não sendo operatória tal presunção, caso em que a carta foi recebida por terceiro, em local que já não correspondia à sua residência (nem local de trabalho), não se pode considerar que o citando tenha ficado onerado com qualquer ónus, nomeadamente o prescrito na alínea e), do artº. 195.º (presentemente, artº. 188.º), do Cód. de Processo Civil (na redação à data vigente).

V - Os poderes de representação “perante a justiça portuguesa em geral” constantes de procuração não contemplam o poder de receber citações.

VI - Estando controvertido que o citando não residia no local para onde foi expedida a carta para citação, nem esse era o seu local de trabalho, foi prematuro o conhecimento de mérito no despacho saneador dos embargos deduzidos que apenas deve ter lugar quando o processo fornecer, já em tal fase processual, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:

a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o apelante abrange, com o recurso interposto, a impugnam a decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha dos factos provados.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.

Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição. [---]

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”. [Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.]

De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).

Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. [Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.]

Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”. [Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.]

Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. [Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt]

Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao embargante/apelante neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.

Impugna, desde logo o recorrente o ponto 2. dos factos provados, alegando que o mesmo encerra matéria conclusiva.

Este ponto tem a seguinte redação:

Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos)”.

Tem, de facto, razão o apelante.

Na verdade, sendo a validade da citação o thema decidendum e fundamento dos embargos deduzidos, torna-se evidente que a redação do citado ponto não pode subsistir com aquele conteúdo já que, contém ele próprio, a resposta à questão jurídica colocada.

Importa não esquecer que o artigo 607.º, nº 4 do CPCivil [---] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.

Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.

Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.

Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).

Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência“ [José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.].

Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito“ [Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda., 1985, pag. 648.].

Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.

Diante do exposto altera-se a redação do citado ponto factual pela seguinte forma:

Nesses autos, a Exequente figurou como Autora e o Executado como Réu, tendo o Juízo Local de Matosinhos remetido a carta de citação dirigida ao então réu por correio registado com aviso de receção, endereçada para a Rua ..., ... Matosinhos, a qual foi recebida em 20/03/2009 por BB, conforme aviso de receção junto aos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido”.


*3. [Comentário] a) O acórdão debate-se com o problema dos "factos conclusivos". No caso concreto, a RP não aceita, porque conclusivo, o ponto 2. dos factos provados, assim redigido:

Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos)”.

O argumento invocado pela Relação é o de que a validade da citação constitui o thema decidendum. Nesta parte, há que concordar com a RP: só podem ser considerados provados factos que respeitem à previsão de uma regra jurídica, ainda que -- supõe-se que ao contrário do entendimento da RP -- esses factos sejam factos jurídicos, isto é, sejam "factos conclusivos". Consequências ou efeitos jurídicos não podem ser considerados provados.

b) Como se tem vindo a tornar comum em acórdãos que rejeitam os chamados "factos conclusivos", a RP afirma o seguinte:

"No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.

Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito."

Neste ponto, já não se pode acompanhar a RP. O que cabe perguntar é o seguinte: por que motivo, em vez de procurar "ressuscitar" uma regra que foi revogada, não se trabalha com o regime que está efectivamente em vigor?

c) Sobre a problemática relativa aos factos conclusivos, cf. MTS, CPC online, Art. 410.º a 422.º (vs. 2024.04), Art. 410.º, 10 ss.

MTS


10/05/2024

Jurisprudência 2023 (167)


Processo de inventário;
âmbito de aplicação; divisão de coisa comum*


1. O sumário de RE 28/9/2023 (611/21.0T8SSB.E1) é o seguinte:

I – Após a dissolução conjugal, por regra, há lugar a inventário (exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens – art.º 1 404.º, n.º 1, in fine) e não já a ação de divisão de coisa comum.

II – É em face do quadro factual apurado que importa indagar se assiste direito ao apelante a intentar a ação de divisão de coisa comum com vista à dissolução da compropriedade ou se deve intentar um processo de inventário para cessar a contitularidade de um imóvel cuja data de aquisição é anterior ao casamento.

III – No caso concreto, está em causa a aquisição de um imóvel, com recurso a empréstimo bancário, anteriormente ao casamento, entretanto dissolvido por divórcio, e que ao pagamento do mesmo foram afetos outros bens comuns do casal, existindo, ainda, outros bens adquiridos na constância do matrimónio, conforme se extrai das peças processuais impetradas nos autos por apelante e apelada.

IV – Por outro lado, na constância do casamento foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

V – Por fim, tendo por acordo entre as partes sido atribuído o imóvel aludido como casa de morada da família à apelada até à venda ou partilha, tem de concluir-se que o imóvel em causa não podia ser objeto de divisão (entenda-se litigiosa) senão nos termos do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal na sequência da sentença do divórcio, ou através de meio próprio, após este processo de inventário.

VI – É que havendo bens em compropriedade do casal, quer por aquisição anterior, quer por aquisição posterior ao casamento e pretendendo em caso de divórcio qualquer dos cônjuges fazer a divisão daqueles bens, parece ser de admitir a possibilidade de uma única ação de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do art.º 1 404.º, do Código de Processo Civil, onde se proceda à divisão ou partilha de todos os bens.


2. No Relatório e na fundamentação escreveu-se o seguinte:

"I – RELATÓRIO

1.1. AA intentou ação especial de divisão de coisa comum contra BB, alegando, em suma que casou com a ré no dia 05 de abril de 2013, no regime da comunhão de adquiridos; que no dia 05 de setembro de 2007 adquiriram a fração “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, destinado habitação sito Rua …, para constituir a casa de morada de família, uma vez que estabeleciam uma relação afetiva, mas não eram casados à data; que o casamento com a ré foi dissolvido por sentença datada de 24 de outubro de 2019; que a supra referida fração é indivisível, não podendo ser constituídas duas frações autónomas e ambos não se entendem quanto à utilização da casa.

Conclui pedindo que se ponha termo à indivisão do referido imóvel. [...]

1.4. No dia 28 de abril de 2023, foi proferida a seguinte decisão:

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da hierarquia e da matéria.

Erro da Forma do Processo.

Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Família e Menores, Juiz 3, o processo n.º 6171/19.5T8STB, onde foi alcançado acordo entre o Autor e a Ré, convolando o divórcio para mútuo consentimento, acordando ainda, especificamente, em atribuir à Autora o direito de utilização da casa de morada de família até à venda ou partilha.

Compulsados os autos resulta que os bens comuns do ex-casal ainda não se mostram partilhados através de escritura pública de partilha ou mediante ação especial de inventário.

A divisão de coisa comum é posterior à partilha, caso o imóvel em compropriedade não tenha sido atribuído a um dos ex-cônjuges com a tornas pelo outro.

O património conjugal constitui uma propriedade coletiva que pertence em comum aos cônjuges mas sem se repartir entre eles por quotas ideais, como acontece na compropriedade.

Após a dissolução conjugal, há lugar a inventário, exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens, que não é o caso concreto, pois os ex-cônjuges casaram em comunhão de bens adquiridos, e não a ação de divisão de coisa comum – neste sentido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.07.2020., in www.dgsi.pt

O que sucede mesmo que o divórcio tenha sido por mútuo consentimento, quer no judicialmente quer na conservatória do registo civil.

Ocorre erro na forma do processo, sendo que a presente forma especial de divisão de coisa comum não é aproveitável para a ação especial de inventário, nem o presente tribunal seria competente.

Pelo exposto, decido absolver da instância a ré, BB, pela verificação de erro na forma do processo que anula todo o processado – artigo 193.º do CPC. [...]

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.3. Apreciação do recurso

O direito de exigir a divisão de coisa comum está previsto no art.º 1 412.º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual “nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.

O direito potestativo de que trata o art.º 1 412.°, do Código Civil, é, na sua essência, um direito de dissolução da compropriedade, que normalmente se opera mediante a divisão em substância da coisa, mas que também pode realizar-se através da partilha do seu valor ou preço.

Há, porém, muitos atos conducentes à cessação da comunhão que nada têm a ver com o direito potestativo aqui regulado, uma vez que a comunhão pode cessar, através dos vários negócios entre vivos ou mortis causa, ou até da usucapião, capazes de concentrarem a propriedade da coisa comum numa só pessoa, que tanto pode ser um dos dois ou mais comproprietários, como um terceiro.

O direito a que alude o art.º 1 412.°, citado, distingue-se, todavia, das outras formas de dissolução da comunhão ou compropriedade, pelo facto de se dirigir contra todos os consortes e ter como fim prático a cessação da compropriedade, e não apenas a determinação da quota do consorte na coisa comum [P. Lima/A. Varela, Código Civil anotado, III, 2.ª ed, p. 386-387.

A divisão da coisa comum pode ser feita amigavelmente ou nos termos da lei do processo (art.º 1 413.º, do Código Civil).

O Código de Processo Civil, no art.º 1 052.º, n.º 1, que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão da coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.

Coloca-se na presente ação e recurso, como essencial, a questão de saber se o autor, ora apelante, tem direito a pôr termo à indivisão da fração autónoma de que é comproprietário com a ré, ora apelada, invocando o primeiro que o imóvel em causa foi adquirido por ele e pela ré no estado civil de solteiros, não integrando, assim, o património conjugal.

Ora, vejamos, antes de mais, os factos:

O apelante e a apelada casaram um com o outro em 05 de abril de 2013, no regime de comunhão de adquiridos, sendo que antes do casamento, adquiriram, por meio de empréstimo, fração identificada em 1. que foi a casa de morada de família do casal e que foi atribuída à ré na sequência do divórcio homologado por sentença proferida em 24 de outubro de 2019.

Na constância do casamento e já após o divórcio, foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

É em face deste quadro factual que importa indagar se assistia direito ao apelante a intentar a presente ação de divisão de coisa comum com vista à dissolução da compropriedade ou se deveria ter intentado um processo de inventário para cessar a contitularidade do imóvel em causa.

Antes de mais, há tomar na devida conta que a “compropriedade” ou “contitularidade” que está em causa nos autos não é entre dois estranhos indivíduos, mas sim entre marido e mulher, casados em comunhão de adquiridos e que possuem em comum não só o imóvel dos autos adquirido antes do casamento, como outros bens adquiridos na constância do matrimónio, conforme se extrai das peças processuais impetradas nos autos por apelante e apelada.

Veja-se, até, que é o próprio apelante que se opõe à admissibilidade da reconvenção alegando que:

O pedido reconvencional efetuado pela Ré, fundamentado no pagamento de valores alegadamente efetuados por si efetuados e referentes a prestações de crédito automóvel, à sua contribuição para o Plano Poupança Reforma, às prestações do crédito habitação e respectivos seguros do imóvel cuja divisão se peticiona, quotizações de condomínio e outras decorrentes da vida em comum havida entre as partes, com vista ao reconhecimento desse crédito sobre o Autor a ser efetivado/compensado aquando da adjudicação ou venda do imóvel, não é admissível à míngua da não verificação de qualquer requisito substancial de conexão (…); e que:

De igual modo, não poderá ser aqui apreciada qualquer divisão de créditos futuros relativos aos empréstimos bancários em vigor, os quais não são adequados à presente forma de Ação especial.”.

O que indicia que existem outros bens, sejam eles ativos ou passivos, a partilhar.

Por outro lado, na constância do casamento e já após o divórcio, foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

Ora, outros bens, igualmente comuns, foram afetos ao pagamento das prestações do empréstimo relativo à aquisição da fração em causa.

Por fim, mas não menos importante, tendo por acordo entre as partes sido atribuído o imóvel aludido como casa de morada da família à apelada até à venda ou partilha, tem de concluir-se que o imóvel em causa não podia ser objeto de divisão (entenda-se litigiosa) senão nos termos do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal na sequência da sentença do divórcio, ou através de meio próprio, após este processo de inventário.

É que havendo bens em compropriedade do casal, quer por aquisição anterior quer por aquisição posterior ao casamento e pretendendo em caso de divórcio qualquer dos cônjuges fazer a divisão daqueles bens, parece ser de admitir a possibilidade de uma única ação de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do art.º 1 404.º, do Código de Processo Civil, onde se proceda à divisão ou partilha de todos os bens.

Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (art.º 1 404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum [este sentido Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III, 3.ª ed., p. 346 e Abel Pereira Delgado, in O Divórcio, 1980, p. 101.].

Daí que quando no processo de divórcio as partes acordaram “O direito de utilização da casa de morada de família é atribuído à autora até venda ou partilha” (cfr. documento junto com a contestação da ré/apelada), as partes só poderiam ter em mente que o acordo firmado era para durar até à partilha dos bens do casal efetuada em inventário na sequência do divórcio ou até a uma eventual venda do imóvel feito por acordo das partes ou de forma litigiosa na âmbito do mesmo inventário.

Não no âmbito de qualquer ação de divisão de coisa comum que, em princípio, não poderia ter lugar.

Fácil será de entender que um declaratário normal, colocado na situação da apelada enquanto requerente da atribuição da morada da casa de família, não aceitaria um acordo no sentido de aquela atribuição lhe ser feita apenas até à venda que viesse a ser realizada no âmbito de qualquer ação de divisão de coisa comum, que no dia seguinte ao acordo o apelante lhe pudesse mover.

Perante o acordo firmado pelo apelante e pela apelada quanto à atribuição do imóvel dos autos como casa de morada de família para a segunda só podia ter o significado de o destino do imóvel ser o do acordo concertado até que entre as partes fosse feita a partilha e eventual venda dos bens.

Tanto mais quanto decorre do processo, designadamente dos documentos juntos com a contestação, que existem outros bens e dívidas (cfr. documentos não impugnados pelo autor/apelante) a partilhar.

Diga-se, ainda, que o douto acórdão do STJ invocado pelo apelante nas suas doutas motivações de recurso não têm paralelismo, o com o presente caso, ou pelo menos na sua totalidade.

Veja-se que ali se escreveu:

Não pode confundir-se esta situação com aquela que estava subjacente ao Ac. da Rel. de Lisboa, de 1-6-10, nº 2104/09.5TBVFX-A.L1, relatado pelo ora relator e sendo adjunto também o ora primeiro adjunto, pois a tal aresto estava subjacente uma dívida perante terceiros que era da responsabilidade de ambos os cônjuges, tendo então sido considerado adequado o aproveitamento do processo de inventário para regular os interesses que eram comuns a ambos os cônjuges.

Assumiu-se então que, embora não existam bens comuns a partilhar (ativo patrimonial), o processo de inventário pode integrar a regulação de outros efeitos patrimoniais do divórcio, desde que se trate de aspetos em que ambos os cônjuges estão envolvidos, por corresponderem designadamente a dívidas que ambos assumiram ou de que ambos são responsáveis.(…)”

Ou seja, naquele caso, inexistem bens comuns a partilhar, o que não é o caso, como resulta dos autos, em que existem bens e dívidas.

Neste conspecto, e subscrevendo a decisão recorrida, julga-se improcedente a apelação."


*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar o decidido pela RE.

Na anterior acção de divórcio, os agora ex-cônjuges acordaram que “O direito de utilização da casa de morada de família é atribuído à autora até venda ou partilha”. Disto não resulta necessariamente que, quanto à "partilha", o direito de utilização da casa de morada de família termina necessariamente no momento dessa "partilha". A declaração também pode ter o sentido de que, depois de realizada a "partilha" dos bens que houver a partilhar entre os ex-conjuges, o destino da casa de morada de família tem de ser objecto de novo acordo ou de qualquer outra solução.

No entanto, o argumento incontornável que pode ser invocado contra a orientação da RE é o de que não é certamente uma disposição negocial que pode alterar o âmbito de aplicação das formas do processo. Portanto, não é por as partes referirem a "partilha" de um bem em compropriedade que a forma de processo adequada passa a ser o inventário, dado que, quanto a ex-cônjuges, este processo só pode ser aplicado "para partilha dos bens comuns" (art. 1133.º, n.º 1, CPC).

b) A RE afirma o seguinte:

"Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (art.º 1 404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum."

É verdade que, se o regime for de separação e houver bens em situação de compropriedade, "terá de recorrer-se à acção de divisão de coisa comum". O que falta concluir é que, mesmo que o regime seja de comunhão e houver bens em situação de compropriedade, também terá de recorrer-se à acção de divisão de coisa comum para a divisão desta compropriedade. O âmbito de aplicação da acção de divisão de coisa comum define-se em função de uma situação de compropriedade, sendo totalmente irrelevante não só se os comproprietários são casados entre si, mas também se o são no regime de separação ou no de comunhão de bens.

MTS