"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/10/2025

Jurisprudência uniformizada (76)


Sociedades por quotas;
exclusão judicial de sócio


-- Ac. STJ 11/2025, de 31/10, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

A deliberação dos sócios a que se refere o art.º 242.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais deve ocorrer no prazo de 90 dias a contar da data em que os respectivos gerentes tiveram conhecimento dos factos que fundamentam a exclusão de sócio. Por sua vez, a acção de exclusão deve ser proposta, no prazo de 90 dias, a contar da data dessa deliberação. Caduca o direito da sociedade, caso não seja cumprido algum daqueles prazos.

 

Jurisprudência uniformizada (75)


Obrigação do mandatário;
execução específica

-- Ac. STJ 10/2025, de 31/10, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

A obrigação do mandatário de transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato prevista no artigo 1181.º do Código Civil é passível de execução específica nos termos do artigo 830.º, n.º 1, do mesmo diploma.


Jurisprudência 2025 (22)


Valor da acção;
aplicação da lei no tempo; conversão em euros*

1. O sumário de STJ 28/1/2025 (8307/13.0T2SNT-XB.L2.S1) é o seguinte: 

I – A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.

II - O DL 323/2001, de 17-12, sem alterar o valor das alçadas, procedeu, à conversão em euros dos valores expressos em escudos, tendo em vista a utilização, em exclusivo, do uso do euro como moeda em território nacional, alterando, em conformidade, a redacção do n.º 1 do artigo 24.º da Lei 3/99, de 13.01.

III – Em acção interposta em data anterior à entrada em vigor das alterações de redacção do artigo 24.º, n.º1 da Lei 3/99, introduzidas pelo DL 323/2001, de 17-12, o valor de €14.963,94 atribuído à causa, em sentença proferida em 02-05-2029, com o qual as partes se conformaram e que, por isso, se terá de considerar definitivamente fixado, não pode ser convertido em escudos, para efeitos de admissibilidade do recurso, por efeito de aplicação de uma fórmula, que se consubstancia na utilização de uma operação inversa à determinada pelo citado DL 323/2001.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. A Recorrente, reafirmando os fundamentos aduzidos no requerimento apresentado após notificação do artigo 655.º, do CPC, pretende a revogação da decisão singular com proferimento de acórdão que admita o recurso de revista.

Persiste em defender que, no caso, para efeitos de avaliação da admissibilidade do recurso, impõe-se aferir em escudos o valor da causa, por lhe ser aplicável a primeira versão constante da Lei n.º 3/99, de 13-01. Propõe, para o efeito, a fórmula (200$482 x €14.963,94) na determinação, em escudos, do valor a ficcionar à acção, tendo subjacente o valor efectivamente fixado no processo (€14.963,94).

Conclui, por isso, que a correspondência em escudos do valor atribuído à causa é de 3.000.000$62, que se mostra superior à alçada vigente à data em que foi instaurada a acção (3000000$00).

Legitima o seu posicionamento no disposto no artigo 2.º do DL 323/2001, de 17-12, nos termos do qual as “alterações constantes do presente diploma não prejudicam os direitos das partes em acções propostas anteriormente à sua entrada em vigor.”.

Cremos que o entendimento defendido pela Recorrente, traduzido na aplicação, no caso, de uma operação de conversão de valores inversa à determinada pelo citado DL 323/2001, não merece acolhimento, pelo que a decisão singular proferida não pode deixar de ser reiterada.

2. Conforme salientado na referida decisão, o DL 323/2001, de 17-12, sem alterar o valor das alçadas, procedeu, na legislação da área da justiça, à conversão, em euros, dos valores expressos em escudos, tendo em vista a utilização, em exclusivo, do uso do euro como moeda em território nacional; nessa medida, abrangeu os valores das alçadas que se encontravam fixados em escudos, alterando em conformidade a redacção do n.º1 do artigo 24.º da Lei 3/99, de 13.01.

O facto das acções em causa nos autos terem sido interpostas em data anterior à entrada em vigor das alterações de redacção do artigo 24.º, n.º1 da Lei 3/99, não legitima o raciocínio em que a Recorrente faz assentar a defesa da admissibilidade da revista, que se consubstancia na utilização de uma operação inversa à determinada pelo citado DL 323/2001 (o de fazer corresponder o valor da causa fixado na sentença em 14.963,94€ em contravalor em escudos).

Com efeito, por imposição legal, os valores da alçada da 1ª instância (3000000$00) e da Relação (750000$00) a ter em conta no caso foram convertidos em euros e o tribunal de 1.ª instância, na sentença (proferida em 02-05-2019), atribuiu à acção o valor de 14.963,94€, o qual se tem de considerar definitivamente fixado uma vez que as partes quanto a ele se conformaram.

3. Assim sendo, tal como concluído na decisão singular, em face do valor da alçada da Relação (14.963,94€) a atender no caso, atento o valor definitivamente fixado ao processo (em 14.963,94€), uma vez que o mesmo se encontra contido na alçada do Tribunal da Relação, não se verifica a condição prevista no n.º 1 do artigo 629.º do CPC, passível de permitir a admissão do recurso: causa com valor superior à alçada do Tribunal da Relação."


*3. [Comentário] A quantia de € 14.963,94 resulta do arredondamento de € 14 963,93691204198. É claro que não tem sentido voltar a determinar o valor da acção em escudos, muito menos utilizando para esse efeito a quantia arredondada.

Caber recordar o velho adágio: "As acções propõem-se, os recursos interpõem-se".

MTS

30/10/2025

Jurisprudência 2025 (21)


Segredo profissional;
segredo médico; consentimento


1. O sumário de RE 16/1/2025 (746/22.2T8SSB.E1) é o seguinte:

- em acção de anulação de testamento por incapacidade da testadora deve admitir-se o depoimento de médico, sobre a situação da testadora, com base em consentimento de descendente da testadora ou em consentimento presumido da testadora.

- é admissível a impugnação da decisão sobre a matéria de facto relativa a factos atinentes ao estado mental da testadora quando na alegação do recurso este estado mental é indicado como objecto da impugnação de facto e nas conclusões se identificam directamente os factos que se reportam àquele estado mental.

- o ónus da prova da situação de incapacidade da testadora incumbe ao A., não sendo necessário, na falta de demonstração daquela incapacidade, discutir factualmente a verificação da capacidade da testadora.

- o art. 278º n.º3 do CPC permite dispensar a avaliação da ilegitimidade processual do A. quando a decisão de mérito seja integralmente favorável ao R..
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV.1. A primeira questão probatória colocada diz respeito à valoração dos depoimentos prestados por dois médicos.

As testemunhas em causa, enquanto médicos, estavam sujeitos ao segredo médico profissional derivado da sua qualidade, estando também a matéria sobre que depuseram inserida no âmbito de protecção desse segredo, como deriva com clareza do art. 139º n.º 2 do Estatuto da ordem dos médicos (aprovada pelo DL 282/77, de 05.07, doravante EOM), dada a larga abrangência da previsão.

Este segredo, constituindo também suporte da relação de confiança a estabelecer com o paciente e instrumento de dignificação da actividade médica [---], é no entanto primacialmente justificado pela protecção da reserva da vida privada, e mesmo íntima (quanto à saúde), da pessoa [---], reserva esta que constitui objecto de um direito fundamental da pessoa (art. 26º n.º 1 da CRP), e é também emanação, a nível infraconstitucional, do direito à personalidade e aos vários aspectos em que este se desdobra (art. 70º n.º 1 e 80º n.º 1 do CC). Segredo, e inerente protecção, que, em linha com o regime do art. 71º n.º 1 do CC, se mantém após a morte do doente (art. 139º n.º 4 do EOM).

Por isso que, não podendo o médico dispor por si do segredo, deve, em caso de intimação como testemunha (na qualidade de médico), comparecer no tribunal, mas não poderá prestar declarações ou produzir depoimento sobre matéria de segredo médico, a não ser com o consentimento do doente, do seu representante legal se houver incapacidade para consentir, ou do Presidente da Ordem (art. 91º n.º 1 do CDM e art. 417º n.º 3 al. c) do CPC).

Deste modo, a violação do segredo profissional corresponde também a uma violação de um direito fundamental da pessoa (citados art. 26º n.º 1 da CRP e art. 80º n.º 1 do CC, em conjugação com o art. 32º n.º 8 da CRP [---]), a qual pode redundar, a estar em causa actividade probatória, na ilicitude da própria prova (diferente do vício meramente processual), acarretando a inadmissibilidade da utilização da prova assim produzida. Proibição de valoração esta que poderia impedir o seu aproveitamento probatório (embora esta seja esta questão cujos exactos contornos e efeitos sejam discutidos).

Não sendo absoluto, o segredo pode ser afastado nas hipóteses do art. 139º n.º 6 do EOM, onde avulta o consentimento do doente (al. a)), sintoma da subordinação deste segredo profissional aos interesses do doente (e, assim, da localização do fundamento essencial deste segredo na referida protecção da vida privada do doente) - todas as normas do EOM referidas vêm repetidas no Regulamento de deontologia médica, aprovado pelo Regulamento 707/2016, de 21.07 (doravante RDM).

No caso, atentos os seus contornos e inexistindo notícia de autorização do Bastonário da ordem dos médicos, fica afastada a possibilidade de aplicação das hipóteses derrogadoras do segredo profissional constantes das al. b) a d) do n.º 6 do referido art. 139º do EOM (ou art. 32º do RDM, que, com propriedade, se refere à exclusão do segredo médico). O afastamento daquele segredo só poderia decorrer, assim, da existência de conflito de valores ou de consentimento do doente. Quanto àquele conflito, supondo uma recusa legítima de depor e um mecanismo processual específico (art. 417º n.º4 do CPC e art. 135º n.º 3 do CPP), inexistentes, também não releva no caso.

Quanto ao consentimento, e tendo falecido o paciente, coloca-se a questão de saber a quem cabe prestar tal consentimento [---]. A lei não faculta uma resposta directa mas decorre do art. 77º do CC, em conjugação com o art. 76º n.º 2 do CC para que aquele remete, que a legitimidade para consentir a divulgação de escritos reportados à intimidade da vida privada cabe às pessoas designadas no art. 71º n.º2 do CC, na ordem neste artigo indicada. Assim, dada a inexistência de cônjuge sobrevivo no caso, aquela legitimidade caberia aos descendentes do falecido. Esta solução deve valer, ao menos por identidade de razão, para a divulgação de dados médicos (que também se reportam à reserva da vida privada, não havendo razão para tratamento diferenciado). E uma vez que a lei não efectua distinções dentro de cada grupo de interessados, nem coloca exigências adicionais, partindo de uma igualação básica dos descendentes entre si (o art. 76º n.º 2 do CC hierarquiza os grupos de interessados - o que o art. 71º n.º2 do CC não faz [---] - mas não faz distinções dentro de cada grupo), deve valer uma solução de solidariedade, em que cada descendente pode agir isoladamente [---]. À luz desta solução, teria que aceitar-se que, embora inexista consentimento expresso do A., este consentimento deriva tacitamente da sua conduta processual, de forma segura, pelo que tal consentimento, não violando qualquer princípio da ordem púbica, tornaria lícita a limitação (ou exclusão) do dever de segredo, no quadro do art. 81º n.º1 do CC. O que poderia existir, dada a posição assumida pelo R. (o qual é igualmente descendente do doente protegido pelo segredo médico), era um conflito entre titulares do consentimento, portadores de posições opostas. Este conflito deveria resolver-se de acordo com a vontade real ou presumida do falecido [Adoptando este critério, em situação paralela, R. Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra editora 1995, pág. 194.]. Ora, atendendo a que o que está em causa é, em último termo, avaliar e respeitar a real vontade da testadora (pois uma vontade viciada não é uma vontade real e aquela quereria exclui-la; simetricamente, teria interesse em manter a sua vontade se não viciada), seria de presumir que esta consentiria na divulgação dos elementos em causa (a fim de se salvaguardar a sua real vontade). Aferição esta ainda acentuada pelo facto de a posição do R. não se basear directamente na tutela de valores atinentes à sua mãe mas, notoriamente, na promoção de interesses pessoais, radicados na manutenção do testamento que o beneficia. O que torna lícito o depoimento daquelas testemunhas.

Por outra via, afirma-se também que em situações de conflito entre herdeiros, após a morte, em que «são necessários certos conhecimentos que apenas podem ser obtidos através do médico que tratou o falecido», deve intervir o consentimento presumido, o qual, dado o exposto interesse no apuramento da vontade real que o próprio testador teria, deveria legitimar a restrição do seu direito à reserva da vida privada, autorizando o depoimento, tendo em conta o disposto no art. 341º n.º1 e 3 do CC [ Assim, André Gonçalo Dias Pereira, O Sigilo Médico: análise do direito português, pág. 29 (disponível online), solução a que também aderiu o Ac. do TRG proc. 1108/14.0TJVNF.G1, in 3w.dgsi.pt]

Naturalmente, esta solução abrange também os elementos médicos revelados através dos documentos juntos aos autos [---]

Inexiste assim ilicitude probatória."

[MTS]


29/10/2025

Paper (529)


-- Lahav, Alexandra D., Phase II: Managing the Remedial Phase in Aggregate Litigation (SSRN 10.2025)

Jurisprudência 2025 (20)


Processo de regulação de responsabilidades parentais;
rol de testemunhas


1. O sumário de RE 30/1/2025 (216/23.1T8STR.E1) é o seguinte:

I. No processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais as alegações a que alude o nº4 do art.º 39º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro (RGPTC) são o primeiro articulado dos requeridos e a primeira oportunidade que têm de arrolarem testemunhas e juntarem documentos sendo que, inicialmente, são citados para uma conferência (art.º35º, nº1);

II. Se não arrolarem testemunhas com essas suas alegações (nem o tendo feito em momento processual anterior) fica precludido o seu direito a arrolá-las posteriormente, já que o prazo assinado no nº5 do art.º 39º é um prazo peremptório i.e. preclusivo do direito.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Temos de convir que o despacho recorrido expressa alguma hesitação do Tribunal “a quo” perante a questão da (in) admissibilidade da apresentação do rol de testemunhas pelo requerente no momento processual em que ocorreu, acabando por decidir rejeitá-lo.

Desde já se diga que a questão versada no acórdão citado no despacho (Ac. TRE de 21.12.2017 proferido no processo nº 1361/16.5T8STR-A.E1) era diferente da que este processo coloca, como o respectivo sumário o evidencia : “No processo tutelar cível de alteração da regulação das responsabilidades parentais, se a parte indicou a sua prova na alegação a que se refere o artigo 42.º do RGPTC, não fica obrigada a apresentá-la no momento previsto no seu artigo 39.º, n.º 4”.

Como também o era no acórdão deste mesmo Tribunal de 12.04.2018 (proferido no processo nº 1935/10.8TMLSB-C.E1): “ No processo tutelar cível de alteração da regulação das responsabilidades parentais, se o requerente indicou a prova no requerimento inicial a que alude o nº 1 do artigo 42.º do RGPTC, não fica obrigado a apresentá-la no momento previsto no artigo 39º, nº 4, devendo a prova inicialmente oferecida ser admitida”.

No nosso caso o ora apelante não tinha ainda apresentado qualquer rol de testemunhas pois no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais as alegações a que alude o nº4 do art.º 39º são o primeiro articulado dos requeridos e a primeira oportunidade que têm de arrolarem testemunhas e juntarem documentos sendo que, inicialmente, são citados para uma conferência (art.º35º, nº1).

Por conseguinte, a questão que se coloca é se não tendo arrolado testemunhas com essas suas alegações (nem em momento processual anterior) fica precludido o seu direito a arrolá-las posteriormente.

Cremos que sim.

O prazo para apresentação das alegações e para arrolar testemunhas (até ao número de 10) assinado no nº 5 do art.º 39º é um prazo peremptório i.e. preclusivo do direito.

Com efeito, os prazos peremptórios estabelecem o período de tempo dentro do qual o acto pode ser praticado (terminus intra quem). Se o acto não for praticado no prazo peremptório, também chamado preclusivo, não poderá já vir a sê-lo, tanto mais que a sua fixação funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os seus poderes-ónus segundo um determinado ritmo, a adoptar um determinado comportamento processual e, consequentemente, praticar o acto dentro dos limites de tempo que lhe são assinalados e não após o limite final.

Para além da invocação de justo impedimento, não é consentida por outros meios, mediante justificação pelo julgador, a admissão da prática de acto processual decorrido o prazo fixado na lei (neste sentido, Ac. STJ de 26.5.2009 relatado pelo Conselheiro Alves Velho e acessível na base de dados do IGFEJ).

Por conseguinte, só numa situação de justo impedimento é que o acto pode ser praticado para além daquele limite, verificados que sejam os pressupostos do artº 140º do CPC, o que aqui nem sequer está em causa.

Como sagazmente se escreveu no citado Acórdão do STJ : “Aceitar posição diferente seria deixar ao critério do julgador, em casuística apreciação e aplicação, utilizando fundamentos jurídicos decorrentes dos princípios gerais do direito, mas que a lei processual não prevê, nem se crê que admita, a derrogação do regime de prazos peremptórios, com seus efeitos preclusivos, pondo mesmo em causa princípios fundamentais do direito processual, que é direito público.

Estamos, na verdade, perante normas de direito absoluto ou coactivo cujo cumprimento, no desenvolvimento da relação jurídica processual que se estabelece entre as Partes e o Estado, o juiz tem como imperativo assegurar, nomeadamente quanto ao princípio da igualdade na concretização vertida no art. 3º-A do CPC ( transposto para o artº4 do NCPC)– “igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações”.

E não é a circunstância de estarmos em presença de um processo de jurisdição voluntária (art. 12º do RGPTC) que altera esta asserção.

É certo que a actividade de jurisdição voluntária se carateriza fundamentalmente: “1) pela consagração do princípio do inquisitório no plano da alegação dos factos e da prova (art. 986.º, n.º 2, do CPC); 2) por o juiz não estar subordinado a critérios de legalidade estrita mas por critérios de conveniência e oportunidade, devendo adoptar a solução mais adequada à situação concreta (art. 987.º do CPC); 3) pelo facto de as decisões adoptadas poderem ser alteradas quando circunstâncias supervenientes ou ignoradas justifiquem a modificação (art. 988.º, n.º 1, do CPC)" [Assim, Rita Lobo Xavier e outros in “ ELEMENTOS DE DIREITO PROCESSUA CIVIL / TEORIA GERAL / PRINCÍPIOS / PRESSUPOSTOS” , pag. 79.].

Porém, como está bem de ver, estas características do processo de jurisdição voluntária não se conexionam, com as normas que estabelecem prazos para a prática dos actos pelas partes, como é o caso da que estamos a apreciar, nem consentem a sua derrogação.

E não se invoque a aplicação ao caso da norma do n.º 2 do art. 598º do CPC, que permite o aditamento ou alteração do rol de testemunhas até 20 dias da data em que se realize a audiência, porque a aplicação de tal norma pressupõe que tenha sido sido apresentado antes rol de testemunhas, pois só se pode aditar ou alterar o rol que antes se apresentou, e, no caso, não foi apresentado qualquer rol."

[MTS]


28/10/2025

O novo regime da separação de acções (art. 267.º, n.º 5, CPC): uma mão cheia de (quase) nada?


1. O art. 2.º L 56/2025, de 24/7, realizou as seguintes modificações no art. 267.º CPC:

-- Alterou a redacção da epígrafe do artigo de "Apensação de ações" para "Apensação e separação de ações";

-- Introduziu um novo n.º 5 com a seguinte redacção:

"5 - Quando um mesmo processo respeite a ações que pudessem ser propostas separadamente, pode ser ordenada a separação delas, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes com interesse atendível na separação, a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a separação."

As reflexões que se seguem respeitam a alguns aspectos destas recentes modificações legislativas. Como é claro, a matéria relativa à separação de acções vai muito para além do que cabe neste breve apontamento. Atendendo à relativa novidade da matéria, o que agora se propõe não passa de uma primeira aproximação construída na base da tentativa e erro.

Em todo o caso, é importante ter presente, para melhor enquadramento do que se vai referir de seguida, que a separação de acções se traduz apenas no desdobramento de um processo em vários processos. Quer dizer: a separação de acções dá origem a um outro processo, mas não a um novo processo. É, aliás, por isso que todos os efeitos produzidos no primeiro processo se mantêm nos processos que decorrem da separação de acções.

2. a) Convém começar por uma nota sobre o regime instituído pelo legislador para a separação de acções. O legislador construiu o regime da separação de acções no n.º 5 do art. 267.º CPC utilizando como modelo aquele que, no n.º 1 do mesmo preceito, se encontra definido para a apensação de acções. Num exercício de copy and paste, legislador pouco mais fez do que trocar a referência à "apensação" no n.º 1 pela referência à "separação" no 5.º. 

O modelo escolhido pelo legislador pode ser condensado na seguinte fórmula:

A apensação/separação de acções pode ser ordenada, "a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a apensação"/"separação".

Desta formulação legislativa decorre o seguinte:

-- A regra é a possibilidade de o juiz ordenar a apensação/separação de acções;

-- A exceção é impossibilidade de ser ordenada a apensação/separação de acções.

Ora, a verdade é que a apensação e a separação de acções não devem ser colocadas no mesmo patamar, desde logo por uma razão muito simples: a apensação e a separação são contrárias entre si, pelo que as vantagens da apensação são necessariamente as desvantagens da separação, e vice-versa. Isto torna evidente que não faz sentido decalcar o regime de uma delas do regime da outra. Ninguém se lembraria de construir o regime da extinção da instância decalcando-o do regime do inicio da instância.

Assim, o que teria sido adequado teria sido que o legislador, em vez de ter decalcado para a separação de acções a formulação do n.º 1 para a apensação de acções, tivesse construído para aquela separação um regime em espelho daquele que vale para a apensação. Noutros termos: se a apensação de acões é um desiderato a prosseguir "a não ser que", então a separação de acções deve ser um objectivo a evitar "a não ser que".

Disto decorre que o que teria sido desejável teria sido que se tivesse estabelecido que a separação de acções não deve ser ordenada "a não ser que" alguma razão justifique essa separação. O critério devia ter sido, não o que se perde com a separação de acções, mas antes o que se ganha com essa separação.

b) Consideradas estas observações, não pode admirar que o § 145 (1) ZPO estabeleça, em matéria de "separação de processos", o seguinte:

"O tribunal pode ordenar que várias pretensões deduzidas numa acção sejam apreciadas em processos separados, quando isso seja justificado por fundamentos substancias. A decisão é tomada em despacho e deve ser fundamentada."

O regime alemão é claro: não se proíbe a separação de acções quando haja alguma desvantagem, antes se permite essa separação quando haja nela alguma vantagem.

3. a) Passando à análise do regime legal da separação de acções, a primeira questão a que importa responder é a de saber qual é o âmbito de aplicação do novo regime. Atendendo à inserção sistemática deste regime, esse âmbito de aplicação parece coincidir com aquele que vale para a apensação de acções e que consta do n.º 1 do art. 267.º CPC: o litisconsórcio, a coligação, a oposição e a reconvenção.

Sucede, porém, que para a coligação já existe, quanto à separação de acções, um regime próprio. Na verdade, o art. 37.º, n.º 4, CPC (equivalente ao art. 30.º, § único, CPC/39) estabelece o seguinte:

"4 - Se o tribunal, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, entender que, não obstante a verificação dos requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, determina, em despacho fundamentado, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, qual o pedido ou os pedidos que continuam a ser apreciados no processo, sob cominação de, não o fazendo, ser o réu absolvido da instância quanto a todos eles, aplicando-se o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo seguinte."

b) Pode admitir-se que o legislador também tenha querido dar expressão legislativa a uma antiga proposta doutrinária: a de aplicar o disposto no art. 37.º, n.º 4 e 5, CPC à cumulação simples de pedidos (por último, Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 439). O argumento que justifica esta posição doutrinária é intuitivo: dado que a coligação contém simultaneamente uma cumulação objectiva (ou seja, uma pluralidade de objectos) e uma cumulação subjectiva (isto é, uma pluralidade de partes), então o que é aplicável à coligação tem de ser aplicável à cumulação de pedidos.

A expressão "separação de acções" para abranger esta cumulação não é indiscutível. No entanto, na análise que se vai realizar utiliza-se a expressão "separação de acções" como abrangendo também a situação de separação de pedidos.

c) De todos estes dados resulta o seguinte: 

-- Apesar de haver um regime específico para a separação de acções na coligação, o legislador considerou que era necessário regular essa separação com um âmbito mais geral;

-- Depois da alteração legislativa, passou a haver, quanto à separação de acções, um regime especial para a coligação (art. 37.º, n.º 4, CPC) e um regime geral para as outras situações (art. 267.º, n.º 5, CPC).

Na falta de qualquer indicação por parte do legislador, pode partir-se do princípio de que este instituiu o novo regime da separação de acções com base na mais comum justificação dessa separação. Trata-se de evitar que, num processo pendente, a apreciação mais demorada de uma acção atrase a decisão que já pode ser proferida quanto a outra acção. Noutros termos: a separação de acções dá expressão à garantia do proferimento da decisão em prazo razoável, dado que visa evitar que um atraso na decisão de uma acção implique um atraso na decisão de uma outra acção.

4. No regime que instituiu para a separação de acções, o legislador foi demasiado minimalista (devendo esclarecer-se que o problema não está no "minimalista", mas no "demasiado"). Replicando, como se referiu, o regime que se encontra definido para a apensação de acções, o legislador deixou ao critério (discricionário) do julgador não ordenar a separação de acções quando o "estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a separação". Lembre-se, a propósito, que qualquer decisão tomada com base neste poder discricionário não é susceptível de ser impugnada em recurso (art. 630.º, n.º 1, CPC).

A verdade é que, no domínio da separação de acções, nem tudo pode ficar sujeito ao critério discricionário do juiz. A separação de acções exige um pressuposto (positivo) quanto à competência do tribunal e um pressuposto (negativo) quanto à não verificação de nenhum impedimento à separação. Nenhum destes pressupostos pode ser apreciado segundo um qualquer critério de discricionariedade.

5. A separação de acções exige um pressuposto respeitante à competência do tribunal para as acções separadas. O tribunal das acções cumuladas tem de continuar a ser competente para cada uma das acções que venha a resultar da separação de acções. 

À separação de acções deve aplicar-se quer uma regra de perpetuatio fori -- de acordo com a qual as acções que são separadas têm de ser da competência do mesmo tribunal --, quer uma regra de perpetuatio judicem -- segundo a qual o juiz das acções cumuladas tem de permanecer como competente para a apreciação das acções separadas. Se, por qualquer razão, alguma destas condições não se verificar, a separação de acções não pode ser ordenada.

6. a) Para que a separação de acções possa ser decretada é necessário que não se verifique nenhum impedimento a essa separação.

b) Um dos impedimentos à separação de acções, embora de carácter circunstancial, é evidente. Trata-se do impedimento à separação de acções depois de uma prévia apensação dessas mesmas acções nos termos do n.º 1 do art. 267.º CPC. O caso julgado (formal) da decisão de apensação obsta a que, depois desta, possa vir a ocorrer a separação das acções que antes tinham sido apensadas. 

c) (i) Também se verifica um impedimento à separação de acções quando entre elas exista uma conexão necessária, ou seja, uma conexão que é imposta às partes e ao tribunal. A conexão necessária distingue-se da conexão instrumental, que é uma conexão construída pelo autor com a finalidade de obter determinadas vantagens.

(ii) Uma primeira situação em que se verifica uma conexão necessária entre várias acções é aquela em que essa conexão é imposta pela lei. É o que sucede no caso do litisconsórcio necessário (art. 33.º e 34.º CPC).

(iii) Também existe uma conexão necessária entre várias acções quando todas elas têm a mesma causa de pedir. Não faz sentido que haja instruções separadas sobre a mesma matéria de facto e apreciações separadas da prova produzida sobre essa matéria.

(iv) A conexão necessária também ocorre quando as várias acções não sejam independentes entre si, isto é, quando a decisão de uma delas condicione a decisão da outra. Um caso típico deste impedimento verifica-se na hipótese em que há uma relação de prejudicialidade/dependência entre as acções, tanto mais que, neste caso, não faz sentido que, depois de se ordenar a separação de acções, se suspenda a instância na acção dependente até ser proferida decisão definitiva na acção prejudicial (art. 272.º, n.º 1, CPC).

Este impedimento mostra que a separação de acções só é justificada quando todas as acções puderem correr os seus termos simultaneamente. É contraditório ordenar a separação de acções com base na garantia da celeridade processual e, depois disso, a instância de uma delas ficar suspensa.

(v) Um outro caso em que se verifica uma conexão necessária entre as várias acções é aquele no qual a decisão tem de ser uniforme para todas as acções. É por isso que, por exemplo, não faz sentido separar as acções quando vários autores impugnam, com um mesmo fundamento, uma mesma deliberação social.

7. a) Utilizando o impedimento resultante da conexão necessária entre as várias acções cumuladas, importa analisar algumas das mais frequentes situações nas quais pode ser justificada a separação de acções.

b) O litisconsórcio voluntário é admissível nomeadamente quando o credor queira obter de vários devedores a totalidade de uma obrigação conjunta (art. 32.º, n.º 1, CPC) ou quando o credor, apesar de poder demandar apenas um dos devedores solidários, decide demandar todos estes devedores (art. 32.º, n.º 2, CPC).

A circunstância de a matéria de facto ser comum a todos os credores ou a todos os devedores impede a separação de acções. Suponha-se, por exemplo, que o credor A demanda os devedores conjuntos B e C; não é pensável que possa haver uma separação de acções entre B e C (havendo, portanto, uma acção entre A e B e uma outra entre A e C), designadamente quando se discuta a validade/invalidade do contrato celebrado entre as partes. Ainda por cima, poderia vir a suceder que os argumentos de cada um dos demandados sobre a invalidade do negócio não fossem exactamente os mesmos, o que poderia colocar o juiz na contingência de proferir, em cada uma das acções, decisões contraditórias sobre essa questão.

c) No que se refere à oposição -- que é uma das modalidades de intervenção de terceiros (art. 333.º ss. CPC) --, a conexão necessária entre a oposição e a acção (e até a natureza das coisas) obsta à separação da oposição (incluindo nesta os embargos de terceiro: art. 342.º ss. CPC) da acção em que foi deduzida. 

d) Quanto à reconvenção, importa considerar os vários elementos de conexão que estão referidos no art. 266.º, n.º 2, CPC. Assim, em concreto:

-- Pela conexão necessária que existe entre a acção e a reconvenção nas hipóteses referidas nas al. a), b) e d) do n.º 2 do art. 266. CPC, em nenhuma delas é pensável a separação entre a acção e a reconvenção;

-- Dado que não é comum que o crédito e o contracrédito tenham a mesma fonte, é pensável que a reconvenção deduzida para obter a compensação (art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC) possa ser separada da acção relativa ao crédito; no entanto, basta que a reconvenção seja deduzida a título subsidiário em relação à excepção de pagamento invocada pelo réu/reconvinte para que a separação já não possa ser decretada, pois que não tem sentido apreciar a excepção numa acção e a reconvenção subsidiária ou eventual numa outra.

e) Numa situação de cumulação simples de pedidos (art. 555.º CPC) não é admissível ordenar a separação de processos quando a apreciação de um pedido condicionar a apreciação do outro. Por exemplo: se um dos pedidos for um pedido de reivindicação de um prédio e o outro for o de indemnização pelos prejuízos decorrentes da ocupação indevida desse prédio, não é possível ordenar qualquer separação, dado que esses pedidos não são independentes entre si.

Também não faz sentido aplicar o regime da separação de acções a uma cumulação de pedidos alternativos (art. 553.º CPC) ou à cumulação de um pedido principal com um pedido subsidiário (art. 554.º CPC). Nenhum destes pedidos pode ser considerado independente do outro, pelo que não é possível apreciá-los em acções separadas.

Restam os casos de cumulação simples de pedidos independentes entre si, precisamente a hipótese de cumulação para a qual se tem vindo a propor a aplicação do disposto no art. 37.º, n.º 4 e 5, CPC. Trata-se, no entanto, de algo que não é comum na prática e de que seria exemplo a cumulação de um pedido de indemnização por facto ilícito com um pedido de restituição de uma quantia mutuada.

f) A situação na qual mais facilmente se pode imaginar ser justificada a separação de acções ocorre na complexa figura da coligação. No entanto, esta cumulação de objectos e de partes não está abrangida pelo disposto no art. 267.º, n.º 5, CPC, dado que para a separação de acções no seu âmbito existe há muito -- aliás, não certamente por acaso -- um regime específico (art. 37.º, n.º 4 e 5, CPC).

8. Se alguma conclusão se pode retirar da breve análise casuística acima realizada, ela é a de que, ao contrário do que se poderia imaginar, os casos em que a separação de acções é justificada e pode ser ordenada não serão muito frequentes. Como é claro, é certo e seguro que sempre surgirão casos em que se pode admitir a separação de acções para resolver um atraso na decisão de uma causa que é induzido pelo atraso na decisão de uma outra causa. 

Não pode deixar de se acrescentar que é com um certo "alívio" que se chega à conclusão de que o âmbito de aplicação da separação de acções é tendencialmente residual. Se se concluísse que a separação de acções era genericamente aplicável às hipóteses de litisconsórcio, de oposição, de reconvenção e de cumulação simples de pedidos, isso significaria que, tal como o n.º 5 do art. 267.º CPC se encontra redigido, a separação de acções seria, em regra, admitida e apenas os critérios discricionários nele estatuídos obstariam a uma separação num litisconsórcio, numa oposição, numa reconvenção ou numa cumulação simples de pedidos.

Isto teria como consequência que, apesar de se encontrarem preenchidos os pressupostos legais, o juiz poderia sempre separar o litisconsórcio, a oposição, a reconvenção ou a cumulação simples de pedidos; tal só não sucederia se um juízo de discricionaridade a isso obstasse. É fácil concluir que as consequências seriam então muito significativas, porque se estenderiam a uma parte considerável do ordenamento processual civil. Felizmente, atendendo ao reduzido campo de aplicação da separação de acções, estas indesejáveis consequências sistémicas estão afastadas. 

9. Resta responder a uma última questão: independentemente de qual tenha sido a justificação prática que levou o legislador a construir um regime relativo à separação de acções em processo civil e de qual tenha sido a ponderação que o legislador fez das vantagens e dos inconvenientes dessa separação, era mesmo indispensável a sua consagração no novo art. 267.º, n.º 5, CPC?

A resposta tenderia a ser positiva se o sistema processual não fornecesse uma resposta para os casos em que, por uma qualquer relacionada com a celeridade processual, se imponha uma apreciação separada de várias acções ou de vários pedidos. A verdade é que não é isso que se verifica, dado que a gestão processual (art. 6.º, n.º 1, CPC) atribui ao juiz os poderes necessários para obter num processo os efeitos que seriam conseguidos através de uma separação de acções. Suponha-se, por exemplo, que, tendo o réu deduzido reconvenção para obter a compensação, a apreciação do contracrédito deste demandado exige uma instrução complicada e demorada; nada impede que o juiz reconheça, de imediato, o crédito do demandante e deixe a decisão relativa ao contracrédito do demandado para um momento posterior.

Costuma fundamentar-se a separação de acções na necessidade de favorecer a celeridade processual quanto à apreciação de uma certa acção ou de um certo pedido. A verdade é que não se vislumbra que este desiderato não possa ser alcançado através dos poderes de gestão processual do juiz, ainda por cima com a enorme vantagem de se poupar qualquer discussão sobre o carácter necessário ou instrumental da conexão entre as várias acções ou os vários pedidos
.

Quer isto dizer que o poder de gestão processual que é reconhecido ao juiz resolve, sem as limitações que decorrem dos pressupostos da separação de acções, os problemas que se procuraria resolver através do decretamento dessa separação. Sendo assim, sempre que importe ultrapassar a não decisão de uma acção pela espera da decisão numa outra acção, o que se impõe é que a dificuldade seja superada, não através da separação de acções, mas através da gestão processual.

Neste contexto, a justificação para a construção de um regime específico para a separação de acções não é nada evidente. É claro que o problema se coloca de forma diferente nos ordenamentos processuais que não dão à gestão processual a expressão que o ordenamento português lhe concede.

MTS

Jurisprudência 2025 (19)


Interposição de recurso;
desistência do recurso; poderes especiais do mandatário*

I. O sumário de RE 30/1/2025 (3031/11.1TBSTR-C.E1) é o seguinte: 

1. No contexto em que foi apresentado, deve interpretar-se a expressão “desistir do recurso intentado” como desistência da reclamação apresentada ao despacho que não admitiu um recurso.

2. A admissão dessa desistência não depende de assentimento da parte contrária nem implica que o mandatário judicial subscritor do requerimento tenha de se munir de poderes especiais para o efeito.

3. A desistência da reclamação ao despacho de indeferimento de um recurso não prejudica a apreciação da conduta do desistente como litigante de má fé.

4. O instituto da litigância de má fé também acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo Tribunal e pela justiça.

5. Em caso de má fé instrumental o mandatário judicial terá, à partida, responsabilidade pessoal e directa nos actos pelos quais aquela se revelou.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A.1. A reclamação do despacho que, em Primeira Instância, não admitiu o recurso não tem, formalmente, a designação de recurso (cf. epígrafe do artigo 643.º do Código de Processo Civil). Assim como a impugnação do despacho do relator para a conferência, já no Tribunal da Relação, também não tem essa designação (cf. parte final do n.º 4, desse artigo 643.º).

Uma vez que a reclamante veio, nas suas palavras, “desistir do recurso intentado” será necessário que, através de interpretação dessas suas palavras (cf. artigos 295.º, 236.º, n.º 1 e 238.º do Código Civil) se chegue ao sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir desse comportamento, sendo certo que o sentido terá de ter um mínimo de correspondência no texto.

Assim, perante o contexto e o teor da declaração emitida (considerando, ainda, a designação arcaica [---] para tal modo de reacção processual) será de considerar que a parte pretende desistir da reclamação apresentada e que constitui o objecto deste apenso.

A.2 Por outro lado, ao Ilustre mandatário emitente dessa declaração apenas foram conferidos poderes forenses gerais e não os especiais para desistir.

Considera-se, porém, que a apresentação de reclamação contra o despacho que não admitiu um recurso não importa a constituição de uma nova instância, pelo que a parte que desiste da reclamação apenas renuncia a um acto do processo e procede à aceitação de uma decisão que foi proferida (assim se consolidando o despacho que não admitiu o recurso). E a aceitação dessa decisão não implica uma desistência (ou confissão) do pedido que foi formulado no processo principal nem uma desistência da instância do processo que, em Primeira Instância, prosseguirá (ou poderá prosseguir) até decisão final.

Consequentemente, nem a desistência da reclamação depende de assentimento da parte contrária [Neste sentido ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2010 (processo n.º 3128/07.2TVPRT-A.S1) [...]]nem implica que o mandatário judicial tenha de se munir com poderes especiais para desistir [Neste sentido ver Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/02/1990 (processo n.º 0000356) [...]]. 

Assim, deve ser de admitir a desistência da reclamação, o que implica que se torne definitivo o despacho que não admitiu o recurso e deixe de ser necessário (ou possível) o conhecimento da impugnação do despacho do relator que foi apresentada."

*III. [Comentário] No acórdão segue-se a doutrina largamente dominante quanto à desnecessidade de poderes especiais do mandatário judicial para desistir do recurso.

Discorda-se desta doutrina, dado que não parece coerente que, para a desistência da instância, esses poderes sejam necessários (art. 45.º, n.º 2, CPC) e que, para um acto que consolida no processo uma decisão, se dispensem esses poderes. Recorde-se que a desistência da instância apenas faz cessar o processo que se encontra pendente (art. 285.º, n.º 2, CC) e que a desistência do recurso implica que a decisão impugnada produz, no processo pendente e, eventualmente, fora dele, todos os seus efeitos.

MTS

27/10/2025

A nova redacção do n.º 2 do art. 137.º CPC: mais incerteza que clareza


1. O art. 2.º L 56/2025, de 24/7, deu uma nova redacção ao art. 137.º, n.º 2, CPC, acrescentando uma referência aos "atos de distribuição". A nova redacção do preceito passou a ser a seguinte:

"2 - Excetuam-se do disposto no número anterior os atos de distribuição, as citações e notificações, os registos de penhora e os atos que se destinem a evitar dano irreparável."

Por sua vez, o n.º 1 do art. 137.º CPC (que permaneceu inalterado) estabelece o seguinte:

"1 - Sem prejuízo de atos realizados de forma automática, não se praticam atos processuais nos dias em que os tribunais estiverem encerrados, nem durante o período de férias judiciais".

Destas redacções é possível concluir o seguinte:

-- O n.º 1 do art. 137.º CPC enuncia uma excepção (para os actos realizados de forma automática) e uma regra (para os outros actos);

-- O n.º 2 do art. 137.º CPC contém uma regra excepcional ao disposto no n.º 1 do mesmo preceito.

2. Dado que a distribuição é um acto que é realizado de forma automática (art. 204.º, n.º 1, CPC) e, por isso, já está incluída na excepção constante do n.º 1 do art. 137.º CPC, parece que a inclusão da distribuição na regra excepcional que consta do n.º 2 do art. 137.º CPC se destina a criar uma "excepção à excepção". Procurando explicar:

-- O n.º 1 do art. 137.º CPC excepciona dos actos que não se praticam quando os tribunais estão encerrados ou durante o período de férias judiciais os "atos realizados de forma automática";

-- A distribuição é um acto que se realiza de forma automática (art. 204.º, n.º 1, CPC);

-- O n.º 2 do art. 137.º CPC excepciona do "disposto no artigo anterior os actos de distribuição";

-- Logo, o n.º 2 do art. 137.º CPC excepciona os actos de distribuição da excepção que consta do n.º 1 do mesmo preceito.

3. Parece evidente que este resultado não é aceitável, dado que não tem nenhum sentido que a distribuição não possa ser realizada quando os tribunais estiverem encerrados ou, principalmente, durante o período de férias judiciais.

Em boa verdade, não era necessário acrescentar os actos de distribuição ao n.º 2 do art. 137.º CPC para se concluir que a distribuição pode ser realizada quando os tribunais se encontrem encerrados ou durante as férias judiciais, dado que isso já resulta, com toda clareza, da excepção que consta do n.º 1 do art. 137.º CPC. Aliás, cabe salientar que as outras excepções que constam do n.º 2 do art. 137.º CPC nada têm a ver com actos realizados de forma automática, pelo que a referência aos actos de distribuição nem sequer se enquadra na lógica do preceito.

Poder-se-ia argumentar que a desnecessidade do acrescento respeitante aos actos de distribuição no n.º 2 do art. 137.º CPC origina apenas uma redundância inútil. A verdade é que não é assim, porque, como o n.º 2 do art. 137.º CPC contém uma norma excepcional ao disposto no n.º 1 do mesmo preceito e este mesmo n.º 1 já contém uma excepção para os actos praticados de forma automática, a inclusão dos actos de distribuição naquele preceito só pode ter o sentido de excluir esses actos da excepção que consta deste n.º 1. Quer dizer: os actos que são praticados de forma automática estão excepcionados no n.º 1 do art. 137.º CPC, pelo que -- como acima se referiu -- o sentido do novo o n.º 2 do mesmo preceito só pode ser o de excepcionar os actos de distribuição da excepção que consta daquele n.º 1.

Como é claro, isto não faz qualquer sentido, pelo que há que aplicar o n.º 2 do art. 137.º CPC como se a referência aos actos de distribuição dele não constasse. Isto possibilita que a esses actos se aplique, não a excepção à excepção estatuída no n.º 2 do art. 137.º CPC, mas apenas a excepção que consta do n.º 1 do mesmo preceito e que, por isso, a distribuição possa ser realizada quer quando os tribunais se encontrem encerrados, quer durante o período de férias. 

4. Em conclusão: a nova redacção do art. 137.º, n.º 2, CPC cria, quanto à realização da distribuição quando os tribunais estão encerrados ou durante as férias judiciais, mais incerteza que clareza.

MTS 


Nota de actualização

Contra o referido no post pode objectar-se que, como se refere no art. 204.º, n.º 1, CPC (red. L 56/2025, de 24/7), a distribuição não é automática, mas (apenas) electrónica.

Isto pressupõe que se distinga entre os actos que são realizados de forma electrónica e automática e os actos que são realizados de forma electrónica mas não automática. Segundo se pode imaginar, os actos que são realizados de forma automática são apenas aqueles que são gerados automaticamente por um sistema informático (como, por exemplo, o Citius).

Não será esse o caso da distribuição, porque ela tem de ser "carregada" pelo oficial de justiça.

Se as coisas são realmente assim, então há que ter presente que o legislador opera (com ou sem razão, isso é outra questão) com uma distinção entre actos electrónicos automáticos e actos electrónicos não automáticos.

MTS

Jurisprudência 2024 (243)


Segunda perícia;
direitos da personalidade; colisão de direitos


1. O sumário de RG 14/11/2024 (5501/19.4T8VNF-C.G1) é o seguinte:

I – No art. 71.º, n.º1 do Código Civil prevê-se apenas um direito próprio dos familiares do falecido e não um direito de personalidade deste, uma vez que a personalidade cessa com a morte, nos termos do art. 68.º do Código Civil.

II – A exumação de um cadáver e a recolha de material biológico para realização de testes de ADN, que seja determinada pela autoridade judicial competente por a considerar necessária à descoberta da verdade material não está em conflito com o disposto no art. 71º, nº 1 do Código Civil, uma vez que neste preceito se visa evitar a prática de atos ilícitos.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

Dispõe o art. 487.º do Código Civil que:

“1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.
3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.”

Conforme ressalta do normativo supra transcrito, a segunda perícia pode ser realizada a pedido das partes ou de uma das partes e pode ainda ter lugar por determinação oficiosa do Tribunal.

Neste último caso basta que o Tribunal julgue necessária a realização de outra perícia para o apuramento da verdade, ou seja, afigura-se-nos ser insindicável este juízo do Tribunal sobre a necessidade ou mesmo imprescindibilidade da realização de uma nova perícia.

Distintamente, já podem ser objeto de impugnação os concretos contornos da realização da segunda perícia, pois que aqui já se coloca uma questão de legalidade na sua execução.

Ora, os recorrentes não colocam em causa o juízo do tribunal sobre a necessidade de realização de uma segunda por julgador entender que a primeira perícia não é totalmente esclarecedora, o que questionam são os moldes em que a mesma foi determinada, ou seja, com a exumação do cadáver do tio para recolha de vestígios biológicos.

A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a inutilidade da realização da perícia, dizendo que a perícia não deve ser realizada por violar o plasmado no art. 130.º do Código de Processo Civil que proíbe a prática de atos inúteis.

Louvam-se numa comunicação de 09/03/2021 (e não 2022 como por lapso referem) do Serviço de Genética e Biologia Forenses Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., mas que efetivamente contraria a inutilidade que os recorrentes invocam, pois que o que diz em tal comunicação  é que do ponto de vista técnico, a análise de material exumado pode ser difícil, pelo que não pode garantir a obtenção de resultados que cumpram os critérios de qualidade que têm definidos, de modo a permitir identificar o respetivo perfil genético e disponibilizar toda a informação genética necessária, com segurança. A especificidade de cada amostra, as condições a que esteve sujeita e o tempo de inumação são fatores determinantes na identificação de perfis genéticos, a partir de material exumado.

Ora, tal comunicação alerta para vicissitudes próprias de uma exumação de cadáver com recolha de amostras, mas em momento algum se refere que tal diligência será inútil, antes se referindo que pode ser difícil (logo, também pode não ser difícil), pelo que as asserções produzidas pelos recorrentes acerca da inutilidade da diligência em causa, não encontram arrimo na comunicação em causa, inferindo-se, pelo contrário, da mesma, que correndo bem a exumação e recolha de amostras pode ser útil para o esclarecimento das relações de filiação objeto de litígio nos presentes autos.

A tal não obsta o tempo decorrido desde a inumação do cadáver indigitado progenitor nem a invocada existência de outros dois cadáveres inumados no mesmo local. São, naturalmente, circunstâncias que poderão afetar a recolha de material biológico, bem como a qualidade das amostras recolhidas, mas é algo que apenas poderá ser avaliado aquando da recolha e análise das amostras recolhidas, pelo que é absolutamente inadequado asseverar que a diligência é inútil. Relembra-se o que no ofício supra referenciado que, como vimos, afastou a inutilidade da diligência, já se consideraram as circunstâncias que podem gerar dificuldades para o sucesso na realização da perícia.

Não existe assim qualquer inutilidade na realização da perícia em causa, bem pelo contrário, a mesma poderá mesmo ser concludente para a decisão da ação, pois que conforme ressalta do estudo sobre Princípios de Genética Forense de Francisco Corte-Real e Duarte Nuno Vieira (da Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, págs. 120), nos casos em que não é possível realizar as perícias de investigação da paternidade com recurso ao trio pai/mãe/filho e se recorre a familiares do pretenso pai, como sucedeu na primeira perícia, as investigações serão de casos incompletos e por isso mais complexas, podendo ser necessário proceder a novas avaliações dos dados familiares, ou mesmo à exumação do cadáver do pretenso pai para recolha de material biológico, de modo a realizar uma investigação de paternidade direta.
*
Dizem ainda os recorrentes que a decretada exumação para recolha de material biológico é altamente lesiva dos direitos absolutos de personalidade moral dos recorrentes e dos demais familiares e ainda da tutela de personalidade de que beneficia o defunto, respetivamente nos termos dos arts. 70.º e 71.º do Código Civil.

Apreciando.

De acordo com o art. 1801.º do Código Civil nas ações relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames sanguíneos e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados, em que incontestadamente se incluem os exames a amostras biológicas recolhidas de cadáveres para a realização de testes de ADN, que são os que com maior fiabilidade próxima da certeza tornam possível estabelecer que determinado indivíduo procede biologicamente de outro.

Porém, esgrimem os recorrentes que tal diligência viola dos seus direitos de personalidade e os do falecido.

Contudo, tal asserção não tem qualquer fundamento como a seguir procuraremos demonstrar.

Dispõe o art. 1.º do Decreto-Lei nº 411/98, de 30/12 que:

“A exumação consiste na abertura de sepultura, local de consumpção aeróbia ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver”.

Por seu turno o art. 21.º, n.º 1 do citado diploma legal dispõe que: "Após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de mandado da autoridade judiciária”.

Antes de mais importa considerar que, com a morte de uma pessoa extingue-se a sua personalidade jurídica, nos termos do n.º 1 do art. 68.º do Código Civil, ou seja, a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas.

A este propósito, Mota Pinto, in Teoria Geral da Relação Jurídica, 2.ª edição atualizada, págs. 200 e 201, expende o seguinte:

 “No momento da morte, a pessoa perde, assim, os direitos e deveres da sua esfera jurídica, extinguindo-se os de natureza pessoal (v. g. os direitos e deveres conjugais) e transmitindo-se para os sucessores "mortis causa" os de natureza patrimonial (…) a tutela do artigo 71.°, n.° 1, é uma protecção de interesses e direitos de pessoas vivas (as indicadas no n° 2 do mesmo artigo) que seriam afectadas por actos ofensivos da memória (da integridade moral) do falecido.".

Assim, “a tutela post mortem é, na realidade, a protecção concedida ao direito que os familiares têm de exigir o respeito pelo descanso e pela memória dos seus mortos.” (Menezes Cordeiro in  Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, pág. 466).

No caso concreto, em primeiro lugar não se vislumbra que a exumação judicialmente determinada, de acordo com os procedimentos legais possa ser violadora da integridade moral dos recorrentes, sobrinhos do pretenso progenitor do recorrido, nada tendo sido alegado em concreto nesse sentido.

O que poderia estar aqui em causa, seria a violação dos direitos dos familiares – não do falecido - nos termos do art. 71.º do Código Civil que dispõe que:

“1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.
2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.
3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências a que o número anterior se refere.”.

Contudo, ainda que se concedesse que poderiam estar também aqui em causa direitos de personalidade próprios dos recorrentes, chamemos-lhes assim, ou seja direitos de personalidade com assento no referido art. 70.º, que não estão, a verdade é que poderíamos ter um conflito com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, conhecimento da identidade pessoal na vertente de conhecimento das origens biológicas, com assento no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.

Ora, sob a epígrafe “colisão de direitos” dispõe o art. 335.º do Código Civil que:

“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
“2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”.

Nesse caso, deveriam os direitos de personalidade dos recorrentes (que em concreto nem sequer se mostram alegados) ceder por o direito ao conhecimento da identidade pessoal dever prevalecer sobre esses hipotéticos direitos.

Ainda que fosse este o caso, a prevalência do direito à identidade pessoal do recorrente justificar-se-ia, porquanto a recolha de material biológico no cadáver do indigitado progenitor para a realização do exame científico, supostamente violador de direitos de personalidade dos sobrinhos, mostra-se num patamar muito inferior relativamente ao direito à identidade pessoal.

Mas não é de todo este o caso. O que está aqui em causa são os direitos dos familiares plasmados no art. 71.º, n.º 1 do Código civil, embora com uma redação imperfeita, não sendo tutelados os supostos direitos dos familiares nos termos do art. 70.º do Código Civil.

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, processo. 912B/2002.C1.S1, em que é relator Álvaro Rodrigues, sustentado na numerosa doutrina e jurisprudência que aí se mostra recenseada, diz-se que “o cadáver não é titular de direitos, mas beneficiário da protecção a que se refere o nº 1 do artº 71º do C. Civil.

(…) Na realização da colheita do material cadavérico para a realização dos testes do ADN, ordenada por autoridade judicial competente, que a considerou necessária, após a devida ponderação, e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, não há objectivamente qualquer violação de direitos, tendo em atenção o direito do Investigante à sua identidade.

A violação do respeito ao cadáver importa a prática de actos que consubstanciem, materialmente, um vilipêndio do cadáver, isto é, actos susceptíveis de aviltar, profanar ou ultrajar o cadáver e não actos médicos periciais exigidos com a legítima finalidade da descoberta da verdade biológica, em casos em que importe o reconhecimento e declaração da identidade de uma pessoa.”.

Eduardo Vera Cruz Pinto in Conferência proferida em Brasília, no âmbito da II Jornada de Direito Civil, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal in http://www.cjf.jus.br) diz que:

No art. 71º do Código Civil português, a proteção aos direitos da personalidade do morto resulta da possibilidade de dano à sua família, que, nesse caso, tem legitimidade processual para atuar em sua defesa, protegendo-se. Logo, a proteção legal é dada não à pessoa que foi, mas à sua família.”.

Assim sendo, como é – também na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/03/2015, proferido no processo 244/06.1TBMNC-B.G.1, em que é relatora Eva Almeida -, dir-se-á que os direitos da família dos falecidos, ponderados em face do direito do autor à sua identidade pessoal, não deverão prevalecer, sendo de salientar que a ter sucesso a ação o recorrido passará inclusivamente a ser o parente mais próximo (primeiro grau na linha reta em contraposição com os recorridos, que são colaterais em terceiro grau – cfr. arts. 1578.º a 1581.º do Código Civil).

Como se refere a propósito da transcrita norma com a epígrafe “colisão de direitos” no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/05/2006, no processo 006A636, em que foi relator Nuno Cameira citado no acórdão do mesmo Tribunal datado de 24/05/2012, no processo 69/09.2TBMUR.P1.S1, em que é relator Serra Baptista:

Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos.

Portanto, averiguando-se que de duas normas atributivas de direitos potencialmente aplicáveis à situação ajuizada só uma delas, afinal, tem aplicação, conferindo, na prática, um único direito, então deixa de poder falar-se em colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade.

Isto é assim porque as limitações ao exercício do direito - referimo-nos, claro está, às limitações extrínsecas, de entre as quais avulta precisamente a colisão de direitos, e não às intrínsecas, atinentes ao seu conteúdo e objecto - determinando, no fundo, como ele deve ser actuado, pressupõem a sua existência, validade e eficácia, que, o mesmo é dizer, um direito em concreto. Não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento.

Se, ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se”.

Adotado este entendimento, em face das considerações supra expostas, resulta que não existe qualquer colisão de direitos quanto aos fundamentos da oposição deduzida pelos recorrentes à exumação de cadáver do seu tio pelos motivos atinentes a si próprios (aliás não explicitados ou concretizados), supostamente subsumíveis ao art. 70.º do Código Civil, sendo que na realidade o normativo aplicável é o seguinte (art. 71.º).

 Já relativamente ao seu falecido tio, o mesmo é desde o momento da morte destituído de personalidade jurídica e, inerentemente, despojado de qualquer direito.

De todo o modo, na interpretação que consideramos a melhor, o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil, confere aos familiares do falecido um direito próprio para defesa da sua memória e dos seus restos mortais. Tem-se entendido que tal direito concedido aos familiares do falecido nos termos do citado normativo apenas pode valer contra a prática de atos ilícitos, pelo que sendo assim, em face de uma exumação determinada por autoridade judiciária, tendo em vista a satisfação de um interesse e direito legítimo, como é o conhecimento das origens não pode prevalecer, inexistindo também aqui qualquer colisão de direitos.

 Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/04/2014:

Independentemente de o cadáver não ser titular de direitos, mas beneficiário da proteção a que se refere o art.º 71.º n.º 1 do Código Civil, importa sublinhar que a realização da colheita de material cadavérico para a realização dos testes de ADN, que seja ordenada pela autoridade judicial competente que a considerar necessária, após a devida ponderação e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, nunca pode estar em conflito com o disposto no art.º 71.º n.º1 do C.Civil.”.

O que o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil visa evitar é a prática de atos ilícitos, como por exemplo a ofensa ao bom nome de pessoa falecida, não sendo, pois necessário qualquer consentimento dos familiares do falecido, uma vez que a determinação judicial é lícita e muito menos qualquer cooperação por ser desnecessária para a realização da diligência em causa, mostrando-se assim deslocada a referência ao art. 413.º do Código de Processo Civil e as considerações tecidas a tal respeito.

A não ser assim, não se compreenderiam a realização de autópsias sem o consentimento dos familiares e diplomas como os que permitem a utilização de cadáveres para dissecação ou extração de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e investigação científica (DL 274/99, de 22/07) ou a colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana (Lei 22/2007, de 29/06). Deste modo, a extração de ADN com recurso à exumação, sendo uma diligência lícita com vista à obtenção de provas tendentes a apurar a verdade biológica, torna infundada a oposição deduzida pelos recorrentes à realização da segunda perícia. (cfr. neste sentido, também o acórdão da Relação de Guimarães, de 07/12/2016, no processo 3727/13.3TBBCL-A.G1, em que é relatora Alexandra Rolim Mendes).

Para finalizar, dir-se-á que no caso Jaggi vs Suíça, em 13/06/2006, o Tribunal Europeu dos Direitos humanos condenou o Estado Helvético pela violação do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (direito à proteção da vida familiar) pelo facto de os Tribunais terem impedido o recorrente de recolher ADN do indigitado pai biológico falecido, não tendo permitido a exumação, prejudicando o direito ao estabelecimento da filiação, num caso em que, como no presente, os familiares do falecido não colocaram entraves de matriz religiosa ou filosófica."

[MTS]